Uma garota de 14 anos está sentada em frente a uma mesa redonda e segura uma cesta, com um lápis encaixado em sua parte inferior. Ela está, aparentemente, desenhando espirais, que se transformam em letras, que tomam a forma de palavras, criteriosamente analisadas por vários homens elegantes que a cercam.
Ela estranha a seriedade daqueles senhores e, de vez em quando, ri, descontraidamente. Assim como ela, que se chama Julie, e sua irmã, Caroline, 16 anos, da família Baudin, também se dedicam Ruth Japhet e Aline Carlotti, ambas com 20 anos, à nobre arte de escrever, sob a inspiração dos mortos.
Por intermédio das jovens Julie e Caroline, surgiu o primeiro O Livro dos Espíritos, com 501 perguntas e respostas, que, consolidadas pelo Professor Rivail, um daqueles atentos senhores presentes na sala de uma fina Mansão de Paris do século XIX, criou o Espiritismo. [1]
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Ao assistirmos ao filme dirigido por Wagner de Assis, Kardec – a história por trás do nome, emocionados, tomamos consciência das dificuldades operacionais por que passou o codificador, na heroica tarefa que abraçou.
Para começar, não dispunha de boa iluminação, submetia-se a baixas temperaturas invernais e não possuía, sequer, uma máquina de escrever.
Seus textos eram todos manuscritos, a bico de pena, muito distantes, ainda, da primeira caneta-tinteiro, que somente surgiria em 1884, e mais distantes ainda do computador, da Internet e do Google, que tanto facilitam, hoje, a nossa vida de escritor.
Não obstante torpedeado por todos os lados pela imprensa, pela igreja, pelos materialistas e até mesmo por correligionários, iniciou-se no intercâmbio com o Além, propôs milhares de indagações aos inteligentes espíritos que o assistiam e provou a anterioridade e a continuidade da vida, além da existência física.
Sua marca maior foi a razão, bafejada pelo que denominava Controle Universal das Manifestações, através de inúmeras consultas a médiuns das mais diversas origens, da França ou fora dela.
Não nos esqueçamos da questão financeira. Os primeiros livros foram bancados integralmente por ele, Rivail, que — pasmem, amigos leitores — abriu mão de seu conceituado nome de professor e tradutor, em favor de uma assinatura — Allan Kardec — potencialmente um fracasso de vendagem, pela situação incógnita e de total obscurecimento no meio intelectual parisiense.
Lembremo-nos das composições gráficas, das revisões e dos acertos, na unha, sem qualquer equipamento e apoio, a não ser o da culta e doce esposa Professora Amélie Boudet, tudo com muito cuidado, pela grandiosa tarefa de que sabia ser responsável.
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Fiquemos com Richard Simonetti:
— Tão grandiosa quanto a própria Codificação foi a ação do Codificador.
— “O Livro dos Espíritos” é uma caixa mágica que deve estar sempre aberta em nossas mãos, porquanto libera dons sagrados de conforto e esclarecimento que, muito mais do que uma simples esperança, oferecem-nos segurança diante da vida e alegria de viver.
— Nele está o substrato da sabedoria humana, que nos permite ensaiar um comportamento melhor, uma visão mais ampla de nossas necessidades, uma participação mais ativa pela construção de um mundo melhor.
— Vivenciá-lo plenamente é desafio para séculos de esforço e dedicação. Divulgá-lo não exige tanto assim. Apenas um pouco de boa vontade.
[1] Texto condensado e adaptado de Os bastidores de “O Livro dos Espíritos”, Superinteressante, 30/6/2018.