A Vela ou o Vento? - Sidney Fernandes

O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê.

Platão

Não é nos gases mais rarefeitos, nos fluidos imponderáveis que a indústria encontra seus mais poderosos motores? Quando se vê o ar derrubar edifícios, o vapor arrastar massas enormes, a pólvora gaseificada levantar rochas, a eletricidade destruir árvores e perfurar muralhas, que estranheza há em admitir que o Espírito, com a ajuda de seu perispírito, possa erguer uma mesa? Principalmente quando se sabe que esse perispírito pode tornar-se visível, tangível e se comportar como um corpo sólido.

O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec

 

Perde-se na noite dos tempos o instante em que o homem começou a se relacionar com os mortos. Desde as culturas mais antigas, nos inúmeros casos constantes da Bíblia, vemos o homem às voltas com seres espirituais. Em várias situações Jesus conversou com eles e afastou os infelizes de seus perseguidos. Encontramos também seres ditosos cuidando de seus protegidos, movidos por seus méritos de dedicação aos necessitados. Eis aqui alguns exemplos de como o sobrenatural sempre fez parte da vida do ser humano.

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Uma das passagens mais belas do velho testamento é a de Tobit e seu filho Tobias. Tobit decidiu cobrar dívida antiga de um homem que se encontrava em local distante. Cego, pensou em seu filho para executar essa missão. Todavia, ficou temeroso quanto à segurança e ao caminho que ele iria percorrer. Suplicou ao Senhor que o assistisse na solução daquele problema. E Deus não tardou em atender suas rogativas, pois Tobias era um homem bom, de muitos méritos e dedicado ao bem do próximo.

Inspirado, Tobit recomendou ao filho Tobias:

— Meu filho, procura na cidade um homem bom e honrado que te possa conduzir.

Tobias encontrou um homem de belo aspecto que poderia guiá-lo. E a viagem correu às mil maravilhas. Durante o trajeto, o filho de Tobit aprendeu a retirar de um peixe o remédio que iria curar seu pai, foi apresentado a Sara, que se tornaria sua esposa e voltou à casa paterna tão feliz quanto dela havia saído. Somente muito mais tarde todos descobriram que aquele guia venerável era um anjo enviado por Deus para guiar e proteger aquela família abençoada.

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Preocupado com a batalha que travaria no dia seguinte contra os filisteus, o Rei Saul foi consultar a pitonisa de En-dor. Por seu intermédio, ele fez contato com o Profeta Samuel — já morto, segundo a Bíblia — que previu sua derrota, com a entrega dele e do povo de Israel às mãos dos filisteus, o que efetivamente aconteceu.

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Jesus convidou Pedro, João e Tiago para que o acompanhassem na subida ao Monte Tabor. Lá testemunharam a manifestação de Moisés e Elias, figuras proeminentes que se destacaram no Velho Testamento, — já mortas, muito tempo antes.

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A passagem mais conhecida, no entanto, foi a de Paulo de Tarso, ainda identificado como o orgulhoso Saulo, fiel guardador das tradições judaicas, que se dirigia a Damasco para prender ou até matar Ananias, por sua condição de cristão. Encontrou Jesus, que proferiu as célebres palavras:

— Saulo, Saulo, por que me persegues?

O moço de Tarso, diante da luz fulgurante de Jesus, tornou-se cego e foi obrigado a ir atrás de Ananias, agora não mais para persegui-lo e sim para obter sua ajuda. Graças à interferência de Jesus, Ananias restituiu a sua visão e marcou o início da conversão do agora Paulo, que se transformou no maior divulgador do cristianismo de todos os tempos.

O contato de Paulo de Tarso com Jesus é um dos mais expressivos episódios em que se manteve contato com o espírito de um morto, no caso, Jesus.

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Estes são alguns dos milhares exemplos registrados na história da humanidade do contato do homem com os desencarnados. O próprio vaticano guarda, em seus museus, manifestações — inclusive de efeitos físicos — rotuladas como milagres ou simplesmente sem explicação.

Há que se considerar, entretanto, que essa estreita convivência com os espíritos estimulou os homens a consultá-los, a princípio, a respeito de questões sentimentais ou relacionadas com a saúde e, depois, a respeito de praticamente tudo.

Esse desvio de finalidade, confundindo o que, metaforicamente, Platão chamou de vento que não se vê, referindo-se aos seres imateriais, e de vela enfunada, referindo-se ao homem encarnado, foi veementemente criticado por Moisés, mais tarde por Allan Kardec — nos primeiros contatos com as mesas girantes —, e hoje até por detratores do Espiritismo, que consideram todos os espíritos como malignos e a comunicação com os mortos prática condenada por Deus.

Nós, espíritas, temos que admitir a existência de abusos e exageros, ao atribuirmos tudo o que acontece aos desencarnados ou ao evocá-los a todo instante para resolverem questões de nossa competência e obrigação, justificando-nos com a expressão de que nos influenciam muito mais do que supomos[1].

Nas questões 530 e seguintes, de O Livro dos Espíritos, encontramos uma série de arguições de Allan Kardec, que hoje nos soam estranhas, mas que na sua época eram necessárias. A bem da verdade, místicos desinformados ainda continuam vendo, como diria minha avó Duzolina, pelo em ovo e fantasmas em atos meramente corriqueiros do nosso dia-a-dia.

— Se a tua louça se quebra, é mais por desazo teu do que por culpa dos Espíritos, dizem os espíritos na questão 530, puxando-nos as orelhas e chamando-nos de volta à realidade.

Por outro lado, junto com a expressão acima[2], nos autênticos casos de influência de desencarnados, Allan Kardec nos faz preciosa revelação a respeito dos chamados levianos e zombeteiros — os tais desocupados do além —, ao dizer que exercitam nossa paciência, mas cansam-se, quando veem que nada conseguem.

Ainda a respeito das falsas imputações que fazemos, ao responsabilizar os espíritos por nossas defecções, é clássica a narrativa de Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns[3], ao descrever as queixas de um fazendeiro, que atribuía aos desencarnados as doenças e mortes de seus rebanhos.

— A mortalidade ou a doença dos animais desse homem provém do fato de suas estrebarias estarem infectadas e de ele não fazer nada para as reparar, pois isso custa dinheiro — foi a resposta obtida dos guias espirituais.

É preciso muito cuidado e bom senso a fim de evitarmos atribuir à ação dos espíritos todos os acontecimentos desagradáveis de nossa vida, geralmente oriundos de nossa desatenção ou de nossa imprevidência.

Para encerrar este texto, e também para não incorrermos em desarvorado extremismo, convém lembrar que o vento que não se ouve pode, efetivamente, influir em nossas vidas.

Clássica também é a passagem descrita por Allan Kardec[4] de irmãs que moravam juntas e, durante muitos anos, encontravam suas roupas espalhadas, rasgadas e cortadas em pedaços.

— Seria obra do diabo, conforme insinuavam autoridades religiosas da época.

Se fosse um espírito infeliz — recomendava judiciosamente a Doutrina Espírita —, mandava a caridade que se lhe dispensasse a atenção que merece. Se fosse um desocupado do além ou um malvado, qualquer que fosse o caso, a prece nunca deixaria de dar bom resultado.

As orações, naquele caso, pareceram, inicialmente, surtir efeito salutar, para, depois de alguma trégua, voltarem as depredações. Diante da criteriosa análise do codificador, que foi chamado a opinar, concluiu-se que se tratava de um vingador, um ex-empregado que havia sido maltratado por aquelas senhoras, quando vivo. O conselho de um espírito superior esclareceu totalmente o assunto ao recomendar que aquelas damas deveriam orar para seus espíritos superiores e praticar a caridade para se livrarem daquelas perseguições.

— Não digo a caridade que dá e distribui, mas a caridade da língua. Infelizmente, elas não sabem dominar a sua e não justificam, com atos piedosos, o desejo que têm de se verem livres do que as atormenta.

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Fiquemos com a expressão final, contida em O Evangelho Segundo o Espiritismo[5], a respeito da influência dos espíritos:

— Os Espíritos maus farejam as chagas da alma, como as moscas farejam as chagas do corpo.

Finalmente, indispensável a citação da questão 469, de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec e parte de sua resposta:

 — Por que meio podemos neutralizar a influência dos maus Espíritos?

— Praticando o bem e pondo em Deus toda a vossa confiança, repelireis a influência dos Espíritos inferiores e aniquilareis o império que desejem ter sobre vós.

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A vela ou o vento?

Valorizemos a vela. A vida é preciosa, assim como é o nosso corpo, que Deus nos deu de presente para a evolução, na presente vida material. Daqui a pouco, no entanto, seremos como o vento, invisíveis, em nossa condição definitiva de vida.

 

 

 


 
 
[1] Questão 459, de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.

[2] Questão 530, de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.

[3] Item 253, de O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec.

[4] Item 89, de O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec.

[5] Coletânea de preces espíritas, item 16, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec.