A HORA E A VEZ DAS MULHERES
Sidney Fernandes
Não importa o resultado da cerimônia do Oscar do dia 25 de abril de 2021. Pela primeira vez, em 93 edições da premiação
concedida pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, mais de uma mulher foi indicada para concorrer na categoria de melhor direção.
As representantes do gênero feminino — a chinesa Chloé Zhao (do filme Nomadland) e a britânica Emerald Fennell (do
filme Bela Vingança) — se tornaram vencedoras, pois, ineditamente, elas foram escolhidas para concorrer a uma das
estatuetas mais almejadas da disputa.
Além da diversidade de gênero, a diversidade de raças passou a ser foco do observatório mundial, pois a americana Viola Davis se tornou a atriz negra com o maior número de indicações (quatro) ao Oscar, destacando o recorte racial para a
concorrência do troféu de melhor atriz.
Essa conquista feminina, no entanto, foi precedida de muita luta e determinação, em face do preconceito e da truculência
masculina, no transcurso de séculos de opressão à mulher.
Quem foi o Dr. Barry?
James Miranda Stuart Barry nasceu nas últimas décadas dos anos de mil e setecentos, dos pais Jeremiah e Mary-Ann Bulkley,
e tinha um irmão e uma irmã. Essa família era muito unida e todos concorreram fundamentalmente para a trajetória do futuro
médico Dr. Barry.
Além da família, James contou com o apoio de pessoas importantes para superar os obstáculos em direção ao estudo da
medicina. Concluiu seu curso na Universidade de Edimburgo em 1812, transferiu-se para Londres e lá estagiou com o renomado cirurgião Astley Cooper, o que lhe permitiu entrar para a escola de cirurgiões em 1813. Em pouco tempo era cirurgião assistente do exército e logo demonstrou toda a sua dedicação e vocação para a medicina, o que o destacou dos demais profissionais da época.
Em 1816 curou a filha do governador da Cidade do Cabo, África do Sul, e lá permaneceu por dez anos, como médico
inspetor da colônia. Foi responsável por melhorias no saneamento básico, tratamento de água e melhores condições de internação para hansenianos e deficientes intelectuais, além de melhorar a vida de escravos e presos. Ao Dr. Barry é atribuída a primeira cesariana realizada com sucesso no continente africano. Por gratidão, o bebê recebeu o seu nome, em sua homenagem.
Sua trajetória por muitos países foi marcada por melhores condições de vida da população e dos soldados, até chegar ao
Canadá, onde teve atritos com colegas de trabalho, por melhores condições humanitárias. Aposentou-se em 1859, como general de brigada.
O caro leitor deve estar se perguntando por que estamos tecendo a rápida biografia deste grande médico e o que ele tem a
ver com o valor das mulheres, mote principal deste artigo. Por causa de uma singular descoberta ocorrida na manhã de 25 de
julho de 1865, depois do amanhecer, quando ecoou um alto grito ao redor do leito de morte do grande médico.
O Dr. James Barry não havia sido um paciente fácil, pois era um homem tão rabugento quanto brilhante. Obedecendo às suas
ordens, as cortinas do hospital militar que ficava próximo à Cavendish Square Londres haviam sido mantidas em penumbra
perpétua. Mas, agora ele estava morto.
Sophia, a encarregada de preparar o seu corpo, não estava disposta a seguir suas últimas vontades: a de que, em nenhuma
circunstância, ele deveria ser despido das roupas com que havia morrido.
Quando Sophia levantou sua camisa de dormir para lavar o corpo do médico, descobriu o segredo que ele havia conseguido
esconder por toda a sua vida: “Ele” era “Ela”, uma mulher que, pelas marcas em seu abdômen, havia tido um filho.
Essa verdade representou um dos maiores escândalos da era vitoriana do Reino Unido e foi abafada durante muitos anos. Dr.
Barry, um dos mais respeitados cirurgiões do mundo de sua época, havia sido uma mulher, que havia driblado as proibições
que impediam mulheres de serem médicas.
Não obstante a voz esganiçada, as ombreiras artificiais, os sapatos altos e as toalhas para disfarçar as curvas, o temperamento
feroz do Dr. Barry garantiu, por sua força, a condição de masculinidade. Na verdade, tratava-se de uma entidade feminina,
que, pelo talento e determinação, a todos convenceu de que era um homem.
Por que Margaret se tornou James?
Em 1809, depois de ter estudado para ser governanta, Margaret Ann Bulkley não viu futuro algum nessa profissão e resolveu realizar seu sonho de se tornar cirurgiã, algo impossível para uma mulher no século XIX. Assumiu o respeitado nome de
seu tio e passou a se chamar James, que se tornaria o lendário Dr. Barry, de uma vida notável e que, pelas dificuldades quase
intransponíveis que superou, tornou-se ainda mais notável.
Margaret, que virou James, não viu perspectivas para sua vida. Ser mulher significava, no século XIX, sinônimo de
condenação a uma vida com etapas pré-determinadas e ambições muito próximas a zero.
Mulheres poderiam ser mães, esposas, freiras ou, sendo de família com recursos, ser escritoras não lidas ou administradoras,
que precisariam lutar durante toda a vida para provar sua capacidade. Tarefa quase impossível, diante do preconceito, do
fanatismo e da ignorância da machista sociedade.
James lutou para ser o que realmente Margaret sonhava ser, com a certeza de que, na vida, tudo é possível ao que tem valor,
garra e determinação. Esses atributos jamais lhe faltaram.
O James de Guimarães Rosa Situações como a de Margaret/James ocorreram em várias partes do mundo. Muitas não foram conhecidas, mas uma boa parte delas foi publicizada nos livros, cinemas e teatros. E no Brasil, tivemos algum caso?
A obra-prima Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é considerada uma das mais significativas da literatura brasileira.
Nela o autor apresenta Diadorim, mulher que queria explorar o sertão, mas não podia, pela sua condição feminina.
Passou a vestir-se e a comportar-se como homem, renunciando à condição de mulher para afirmar sua atitude feminista e ter liberdade de agir da forma que queria. Diadorim tornou-se homem e vivo enquanto vestido, mulher e morta, no advento da sua nudez.
A personagem não apenas se impôs, mas também declarou sua independência perante a sociedade patriarcal da época, cujos
preconceitos perduram até os nossos dias.
Jesus era feminista?
O legítimo feminismo, não o do estímulo às passeatas com estandartes coloridos, mas o que outorga diretrizes superiores e
edificantes às mulheres, surgiu com Jesus. Antes dele, o Judaísmo considerava a mulher mercadoria condenada ao cativeiro. Com Jesus, houve a inauguração de uma nova era para as esperanças femininas, pois no Evangelho encontramos a consagração da Mãe Santíssima, a conversão de Madalena, a dedicação das irmãs de Lázaro e o espírito abnegado das senhoras de Jerusalém que acompanharam o Mestre até o último instante de sua vida.
Depois de Jesus, não obstante a aspereza de suas palavras, Paulo de Tarso consolidou o movimento regenerativo feminino,
levantando a mulher de sua aviltada condição para alçá-la à condição de mãe, irmã e filha, como criatura de Deus.
Qual é a posição do Espiritismo perante a mulher?
O Espiritismo deu sequência a esse processo de libertação, através da grandiosidade histórica de seu Codificador: Allan
Kardec. Ele casou-se com uma senhora intelectualizada e nove anos mais velha, caso atípico para sua época. Com ela — também educadora — militou pela educação e pelo direito de as mulheres se formarem em medicina, bem como defendeu o voto feminino.
Em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec ressalta que a diferença entre os sexos se restringe aos gêneros da organização
física, porquanto o espírito pode renascer com um sexo ou com outro, sendo lícita a igualdade de direitos entre o homem e a
mulher, diferenciando-se apenas suas respectivas funções. Outro aspecto importante a se considerar foi ele ter escolhido mulheres como intermediárias dos espíritos. As melhores mediunidades dos seus colaboradores eram exercidas por meninas, cujas idades variavam entre quatorze e dezessete anos.
Somos espíritos e o corpo é apenas uma veste temporária.
Podemos reencarnar como homens e como mulheres, brancos, negros, amarelos, em qualquer classe social e em qualquer país, assevera Allan Kardec, em pleno olho do furacão, isto é, em meados do século XIX, quando havia se iniciado o movimento de emancipação da mulher, entre as décadas de 1840 e 1850.
Espíritos não têm preferência para nascer como homem ou como mulher, porque o que efetivamente lhes interessa é o
progresso, haurido nas diversas provações e deveres especiais atinentes a cada sexo.
— Aquele que só como homem encarnasse só saberia o que sabem os homens — dizia Kardec.
Encerrarei com as palavras de Richard Simonetti, contidas em seu livro O Que Fazemos Neste Mundo, em que ressalta o
amor materno, algo de Deus no coração feminino, que favorece na mulher o desenvolvimento do seu lado espiritual.
— Por isso ela é mais propensa à atividade religiosa e mais sensível aos valores espirituais.
Espíritos conscientes de suas responsabilidades reencarnatórias superarão as limitações e valorizarão as virtudes de cada vida, tenha ela sido em corpo feminino ou em corpo masculino, para melhor aproveitarem sua experiência evolutiva.
REFERÊNCIAS: O Livro dos Espíritos, Allan Kardec; O que fazemos neste mundo, Richard Simonetti; Grande Sertão:
Veredas, Guimarães Rosa.