A Profanação - Sidney Fernandes

A PROFANAÇÃO
Sidney Fernandes

(1948@uol.com.br)


Morreu Maria. De repente! E João, seu marido, não tinha onde enterrá-la. De nada adiantaram os alertas de Maria para que
João providenciasse um fundo mútuo funerário. Pagariam um pouquinho por mês e toda a família seria beneficiada.
Mas, João era teimoso como uma porta. E apegado, como ele só, às suas parcas economias. Além de tudo, não admitia falar
no assunto morte, em sua casa.
— Estamos ficando velhos, João. E se a gente morre, para que cemitério iremos? - objetava Maria.
— A gente dá um jeito.
Agora o estrago estava feito. Túmulo da família somente na cidade em que nasceram. Distância longa, quase trezentos
quilômetros. O traslado ficaria mais caro que o enterro. Molho mais caro do que o peixe.
O que fazer? O dinheiro estava curto. Só dali a duas semanas sairia a aposentadoria. No sábado à noite seria difícil
comprar um túmulo, mesmo que arranjasse dinheiro. O que fazer?
Foi quando a filha - Sílvia - teve a ideia salvadora e falou, referindo-se ao marido:
— Pai, o Justino tem um túmulo. É da família dele e está vazio.
João, desesperado à procura de uma solução, balbuciou:
— Mas, será que ele nos empresta? Eu nem me dou muito bem com ele...
— Empresta sim, pai. Ele é muito bom. E também é coisa provisória, pai. Em menos de um mês a gente compra um novo
para ele.
Dito e feito! Diante das circunstâncias desesperadoras, Justino não vacilou em ceder o túmulo vazio para a família da
esposa. Era uma questão até de humanidade.
E seria algo transitório mesmo. Tanto é que, duas semanas depois, o sogro o procurou para adquirir um novo túmulo, a fim
de restituir o que era da sua família.
Mas, nesse ínterim, já havia ocorrido um problema muito sério. A ex-esposa de Justino soube do falecimento. Foi ao
cemitério e constatou o enterro do sogro de Justino no túmulo da família. Ao invés de falar com ele e resolver o problema
civilizadamente, saiu procurando filho por filho, para denunciar a profanação.
Uma questão que poderia ter sido contornada civilizadamente ganhou contornos de tragédia. Bastaria um pouco de bom senso, compreensão e espírito de solidariedade das pessoas envolvidas e tudo poderia ter sido resolvido pacificamente, em poucos dias.
As palavras ferinas, a agressividade e as ameaças proferidas pela família de Justino, no entanto, provocaram mágoas que
dificilmente serão esquecidas. Feridas inúteis, que demandarão muito tempo para serem cicatrizadas.

Diz Emmanuel que todas as vezes que nos atrevemos a nos aventurar pelos caminhos da claridade, deparamo-nos com
milênios de sombras do passado. Fica difícil, portanto, controlar impulsos inferiores, a não ser à custa de muito esforço próprio, sob pena de nos entregarmos às sugestões inferiores, que nos convertem em vivos instrumentos do mal. Compreensão e respeito sempre devem nos preceder a tarefa, em qualquer circunstância, mesmo as aparentemente injustas.
É bom a gente colocar as barbas de molho para que o futuro não nos coloque em situações irreparáveis. A ira é péssima
conselheira. Na hora da raiva fazemos e falamos coisas que depois não têm conserto. Ficam para sempre. Ponderação,
prudência, vigilância e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, já dizia minha avó.