Caminhe com os meus sapatos - Sidney Fernandes

CAMINHE COM OS MEUS SAPATOS
-Sidney Fernandes 


Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter... calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias.
Clarice Lispector
Estudiosos do relacionamento humano estão chegando à conclusão de que a melhor maneira de evitar atritos e manter a fraternidade entre as pessoas é um colocar-se no lugar do outro, sentir o que ele sente e entender suas necessidades, motivações e perspectivas. Esse elemento de percepção emocional tem um nome: empatia.
Essa inteligência emocional não é apenas o espelho do outro e sim o desenvolvimento de uma habilidade social que pode ser a porta de entrada para o altruísmo, a gratidão e o perdão. E mais: esse exercício pode, além de apaziguar os homens, aumentar o seu nível de bem-estar e felicidade.
Do píncaro da nossa pretensiosidade, consideramos alguns textos evangélicos inaplicáveis, tanto na época de Jesus, como nos tempos atuais. Como este:
— Se alguém vos obrigar a caminhar mil passos com ele, caminheis mais dois mil. Mateus, 5:41
Ainda que não levemos essa expressão ao pé da letra e compreendamos que o intuito de Jesus era o de coibir e desestimular a vingança, em tempo de violência era e é possível o homem assumir semelhante comportamento?
Vendo a recomendação sob outro ângulo, talvez fique mais clara a intenção do Sublime Mestre. Com a sua extraordinária e ampla visão do futuro, não estaria Jesus sugerindo que caminhássemos os passos do inimigo para melhor entender suas agruras e deficiências?
Diz um velho provérbio indígena que você jamais deve julgar um homem, até ter andado uma milha em seus mocassins (never judge a man until you have walked a mile in his moccasins).
Não seria essa exatamente a intenção de Jesus, com sua imensa sabedoria e conhecimento do comportamento humano?
Tanto quanto com o apelo ao perdão e à condescendência, Cristo não estaria nos convidando a colocarmo-nos no lugar do outro e a
caminhar com os seus sapatos, em autêntico exercício de empatia?
Aliás, não foi isso que ensinou quando disse “Tudo o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-o assim também a eles”? O de nos colocarmos no lugar do outro?
Num processo obsessivo, por exemplo, por conhecermos apenas um lado da moeda, cresce em nós um sentimento de comiseração pelo perseguido e um crescente desamor pelo obsessor. Daí tornar-se necessário atentarmos para uma judiciosa expressão de Emmanuel, quando nos adverte:
Não lhes conheces a história desde o princípio e não percebes, agora, a causa invisível da dor que os degrada.
Lembro-me do caso de Cláudio que, em existência anterior, abusou de seu poder e esmagou Celso, uma de suas vítimas.
Prejudicou sua esposa e filhos e, por vazão à prepotência, tornou sua vida um inferno. O perseguido, ao expirar, sem nem mesmo ter muita consciência de seu novo estado, somente respirava vingança.
Da erraticidade, empreende minuciosa busca e encontra seu verdugo, agora em nova encarnação. O encarnado, pela natural falta de liberdade da prisão do corpo, fica praticamente à mercê da antiga vítima, agora convertida em feroz perseguidor, que passa a lhe provocar toda a sorte de perturbações.
— Você destruiu minha casa e minha família. Agora farei o mesmo com você.
A sanha destruidora atinge a razão, a saúde física e a alma de Celso, que acusa os golpes pela fragilidade que a culpa e o remorso, ainda que inconscientes, lhe impõem.
A nova vítima busca socorro. Depois de via sacra, médicos da Terra, impotentes, concluem que seus males se devem a causas idiopáticas, ou seja, não definidas ou desconhecidas pela ciência.
Alma caridosa encaminha Celso para atendimento fraterno de instituição socorrista, que o acolhe e, rapidamente, diagnostica o processo obsessivo, que começa a afetar a sua sanidade mental.
Alexandre, o recepcionista, começa a acompanhar o caso e, condoído com a precária situação de Celso, ora sinceramente a seu favor e o submete ao tratamento fluidoterápico. Diante das poucas melhoras, em reunião dedicada ao trato de espíritos obsessores expõe sua comiseração ao mentor espiritual.
— Noto que o irmão tem se dedicado sinceramente ao caso de nosso irmão Celso. Percebo também que passou a nutrir crescente ojeriza pelo perseguidor, diante das mazelas que vem provocando.
— Se me permite a sinceridade, caro orientador, o senhor tem toda razão. Em meu longo trabalho nesta área de assistência espiritual, nunca encontrei espírito tão maléfico, com tamanha semeadura de perdições que, se não forem contidas, levarão nosso assistido à loucura psíquica.
— Embora louvável seus esforços, caro Alexandre, este caso merece cuidados especiais. Você não conhece esta situação desde o princípio — ponderou o espírito benfeitor, parafraseando, claramente, conhecida expressão de Emmanuel.
— Seria possível um entendimento direto com o obsessor?
— perguntou Alexandre.
— Infelizmente suas condições fluídicas não são propícias à uma comunicação direta. Por isso, estou intermediando as informações que naturalmente posso vislumbrar que, para mim, são muito claras em sua aura psíquica.
Alexandre percebeu que estava lidando com um mentor de certa elevação, com acesso visível ao corpo espiritual do obsessor.
Notou também, pela discrição do mentor, que mais uma vez estavam lidando com um caso em que obsessor e obsidiado haviam errado e que, se não fosse tomada qualquer providência, estavam diante da possibilidade da criação de um círculo vicioso, que poderia se prolongar por tempo indefinido.
— Nesse caso, como poderemos ajudar nossos protagonistas. 

— perguntou o atendente com solicitude e humildade.
Orem por ambos, pois precisam de ajuda imediata. Vou consultar meus superiores e depois lhes darei notícias.
A cura Passados trinta dias, Alexandre foi procurado novamente por Celso. Estava mudado, sorridente, denotando grande alívio.
Sumiram as perturbações, sua saúde estava ótima e tudo estava correndo bem, em sua casa e em seu trabalho.
— Foram os passes que vocês me aplicaram. Vou continuar com o tratamento até completar as oito sessões que vocês me
recomendaram.
O entrevistador sorriu, mas sabia que não era bem isso que havia ocorrido. Costumamos falar para nossos consulentes que a aplicação fluídica tem curta validade, como se fosse um remédio paliativo. A solução definitiva, tanto para os casos físicos, como para os casos espirituais, incluindo um processo obsessivo, somente acontece com o apaziguamento de ânimos entre os personagens e com os esforços de ambos de renovação interior.
Assim que lhe foi permitido, travou novo diálogo com o mentor espiritual, que o acolheu fraternalmente.
A solução
— Estava esperando por sua presença para conversarmos

— disse o mentor para Alexandre. Você deve estar intrigado com a melhora de Celso, não é isso?
— Sim, sim — respondeu o atendente. Uma mudança extraordinária que trouxe alívio para nosso paciente e sua família.
E como está Cláudio, o obsessor? Foi levado para instituições socorristas?
— Ao contrário, está por aqui mesmo, mais ligado do que nunca a Celso e sua família.
— Ué, então não estou entendendo. Finalmente aquietou seu espírito e entendeu que a vingança o estava prejudicando também?
— Mais ou menos isso. Vou explicar melhor. Não sabíamos mais como atender Celso e sua família. Quando Cláudio lhe dava alguma trégua, o obsidiado, por sua associação com o perseguidor, retomava a conexão entre ambos. Tentamos afastar o obsessor, mas, se tropeçava na rua ou se surgia qualquer problema em sua casa ou em seu trabalho, o enfermo pensava nele. Se a cabeça doía ou esposa e crianças o irritavam, debitava o desconforto ao espírito — falou o orientador espiritual.
— Encontramos uma solução natural para Cláudio, Celso e sua família.
— Que solução? — perguntou curioso Alexandre.
— Nossos mentores maiores ligaram Cláudio definitivamente à família de Celso. Laços fluídicos mais profundos agora ligam o acompanhante invisível à família antes perseguida. Brevemente o outrora obsessor, com a bênção da Providência Divina, renascerá como filho querido, necessitado de carinho e compaixão Alexandre, sorrindo, emocionado, encantou-se com a sábia providência da espiritualidade. O obsessor descansou. O obsidiado e sua família descansaram. Os benfeitores descansaram.
Fiquemos com Hilário Silva:
Transformar obsessores em filhos, com a bênção da Providência Divina, para me haja paz nos corações e equilíbrio nos lares, muita vez, é a única solução.
Referências: Caminho Espírita, Espíritos Diversos; Religião dos Espíritos, de Emmanuel; Pão Nosso, de Emmanuel; O Evangelho
Segundo o Espiritismo e O Que é o Espiritismo, de Allan Kardec; A Loucura Sob Novo Prisma, Bezerra de Menezes.