Eles " Perderam" a Vida - Sidney Fernandes 

ELES "PERDERAM" A VIDA

- Sidney Fernandes 


Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.
Mateus, 16-25
Moisés
Moisés teve origem escrava. Foi recebido e adotado pela filha do faraó Aquenáton e teve educação e influência do povo egípcio. Seu nome, segundo as tradições judaicas, originou-se, provavelmente, do fato de ter sido salvo das águas.
Foi criado num período de prosperidade, paz e esplendor do Egito, durante o reinado de Aquenáton. Se lhe conviesse, poderia usufruir do poder, privilégios e regalias palacianas até o final de sua vida.
Para termos uma ideia, um de seus irmãos, Tutancâmon, se tornou um dos mais fascinantes faraós da história egípcia. No entanto, Moisés, preferiu outra vida...
Saiu do palácio, fixou-se em região montanhosa e se tornou o libertador de Israel, conduzindo o seu povo durante quarenta anos em direção à terra prometida.
Foi o instrumento humano na criação da nação de Israel. E, segundo Deuteronômio 34:10, nunca se levantou em Israel profeta algum como Moisés, a quem o Senhor conhecera face a face.

Paulo de Tarso
Nossa alma com dois cavalos presa. Um belo e bom. Outro em tudo o contrário.
Por isso é difícil o governo da alma. É que um puxa para um lado. O outro, para o outro. Ao belo e bom chamaremos belo e bom. Ao outro chamaremos outro. Às vezes o outro morde o freio. E arroja consigo alma e condutor. Ai pobre da alma tomada pelo outro.
Platão
Segundo alguns autores, Paulo de Tarso era exímio conhecedor do pensamento grego e pós-clássico. Em suas epístolas fez uso de muitas ideias do filósofo grego Platão, chegando até mesmo a usar as mesmas metáforas e a mesma linguagem. Em Fedro, por exemplo, Platão colocou Sócrates dizendo que os ideais celestes são percebidos como se através de um vidro, vagamente. Estas palavras são ecoadas por Paulo em Pois agora vemos como por um espelho em enigma (Coríntios I, 13:12).
Filho de comerciantes ricos, cidadão romano, ligado à seita dos fariseus, dedicava-se, a seu modo, com sagrada paixão ao serviço de Deus. Israelita, orgulhoso, com o entusiasmo impetuoso da mocidade, combatia o cristianismo, por considerálo uma traição ao judaísmo.
Perseguia os seguidores do tal Jesus, porque eles haviam abandonado a lei mosaica. Tinha uma missão a cumprir: combater o cristianismo até destruí-lo.
Numa posição privilegiada e confortável, imbuído de poder e prestígio junto ao sacerdotes, poderia continuar com sua missão de zelador das coisas de Deus pelo resto de sua vida, defendendo a Torá, o pentateuco, o sagrado rolo da lei do Sinai.
Ao conhecer Jesus preferiu outra vida...
Arranjou grandes problemas. Passou a ser repudiado pelos adeptos do judaísmo, pela sua conversão ao cristianismo.
E não foi aceito imediatamente pelos cristãos, pelos antigos desmandos contra eles cometidos.
Não obstante, tornou-se o maior apóstolo, divulgador e um dos mais influentes escritores do cristianismo primitivo, cujas obras compõem parte significativa do novo testamento.
Sua conversão alterou a história do cristianismo, que passou a ser espalhado por toda a bacia do Mediterrâneo, tanto para o oriente como para os confins do ocidente. Sua liderança e legado permitiram a formação de comunidades que abandonaram os rituais da lei mosaica e passaram a aceitar os ensinamentos sobre a vida e a obra de Jesus.
Paulo de Tarso, que outrora assolava a igreja, entrando pelas casas e arrastando homens e mulheres para depois entregálos à prisão, tornou-se um dos mais fieis e divulgadores da doutrina do Cristo na Terra. Afinal de contas, ele havia recebido as boas novas não de qualquer um, mas do próprio Cristo. Foi o desbravador do cristianismo.

Albert Schweitzer
Nasceu alemão, em 1875. Morreu francês, em 1965.
Era descendente de importantes políticos. Seu avô era prefeito na Alsácia. Era primo de Jean Paul Sartre, cujas ideias entendia serem respeitáveis quando são sinceras. Era um dos melhores intérpretes da obra de Bach e uma autoridade na construção de órgãos musicais.
Aos trinta anos gozava de posição invejável numa das maiores universidades europeias, tinha grande reputação como músico e prestígio como pastor de sua igreja.
Não lhe era suficiente. Preferiu outra vida.
Tinha uma alma sempre pronta ao serviço. Em 1905 iniciou o curso de medicina e seis anos mais tarde, já formado, partiu para Lambarene, no Gabão, África, onde africanos debatiam-se na orfandade de cuidados e assistência médica, na dura vida da selva.
Para levantar fundos para construir sua obra, passou a realizar conferências e concertos musicais na Europa, bem como a escrever livros, cujas rendas passaram a contribuir para a manutenção dos pavilhões hospitalares.
Em 1952 recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Morreu em 1965, em Lambarene, África.
Oskar Schindler
Em 1939 Oskar Schindler abriu uma fábrica de esmaltes na Cracóvia, Polônia. No auge do seu negócio, em 1944, empregava 1750 trabalhadores, dos quais cerca de 1000 judeus. Além de industrial alemão sudeto, era espião e membro do Partido Nazista.
Com o início da segunda guerra mundial, Schindler tratou de proteger seu negócio, evitando que seus funcionários fossem deportados. A princípio mantinha-os seguros tão-somente para manter seus lucros.
E poderia continuar com sua confortável e cômoda situação, ganhando dinheiro fácil e usufruindo de seu prestígio junto das autoridades alemãs. Preferiu outra vida...
Com o passar do tempo, sensibilizou-se com a situação dos judeus e passou a salvá-los da deportação e da morte nos campos de concentração nazistas. Usava o seu dinheiro para subornar oficiais nazistas com ofertas de luxo.
Quando a Alemanha começou a perder a guerra, em julho de 1944, os campos de concentração começaram a ser fechados e os restantes prisioneiros a serem evacuados para oeste. Schindler convenceu as autoridades a transferir sua fábrica para a cidade de Brunnlitz, na região dos sudetos.
De acordo com uma lista apresentada por Schindler, cerca de 1200 judeus viajaram em outubro de 1944 para a fábrica relocada e escaparam da morte na câmara de gás.
O que ganhou Oskar Schindler com o seu desprendimento?
Embora tivesse perdido toda sua fortuna com subornos e suprimentos para salvar judeus, ele sabia que havia feito a coisa certa.
Schindler jamais foi esquecido pelos judeus, que o socorreram quando não lhe restava mais nada com que viver.
Em 1963 recebeu a designação de justo entre as nações do governo de Israel. Morreu em 09 de outubro de 1974.
Zilda Arns
Zilda Arns Neumann nasceu em Forquilhinha (SC), em 1934. Faleceu em Porto Príncipe (Haiti), em 2010.
Filha de alemães, em 1953 começou a estudar medicina. No mesmo ano em que entrou na faculdade começou a cuidar de crianças menores de um ano. Já naquela época impressionou-se com a grande quantidade de crianças com doenças de fácil prevenção, como diarreia e desidratação.
A partir de 1959, já médica, aprofundou-se em saúde pública, pediatria e sanitarismo. Seu objetivo maior era salvar crianças pobres da mortalidade infantil, da desnutrição e da violência em seu contexto familiar e comunitário.
Pela sua posição econômica e social, poderia perfeitamente manter-se à distância da dor e da pobreza. Preferiu outra vida...
Coordenou campanhas, instituiu programas de planejamento familiar e criou a pastoral da criança. Partiu do princípio de que a educação é a melhor forma de combater a maior parte das doenças de fácil prevenção e a marginalidade das crianças.
Criou a pastoral da pessoa idosa. Hoje mais de cem mil idosos são acompanhados em vinte e cinco estados brasileiros.
Faleceu em Porto Príncipe, em missão humanitária, quando o país foi atingido por violento terremoto. Tornou-se, pelo seu profundo amor pela humanidade, uma das vítimas da catástrofe.
Como entender a atitude de certas pessoas?
Como entender, aos olhos humanos, o comportamento dessas pessoas? Moisés, Paulo de Tarso, Albert Schweitzer, Oskar Schindler, Zilda Arns e, acrescentaríamos, os chamados Médicos sem fronteiras (*), Madre Tereza de Calcutá, dentre muitos, muitos outros que se destacam na história da civilização?
O que eles têm em comum?
O seu profundo amor pela humanidade.
Todas essas pessoas perguntaram-se se poderiam continuar em suas situações de conforto e segurança, enquanto milhares não tinham direito à mínima condição de sobrevivência.
— Eles não têm direito à mesma felicidade que tenho? - perguntaram-se.
Concluíram esses abnegados que não temos direito de guardar nossa vida para nós mesmos. Resolveram perdê-la, por amor ao semelhante.
Todos temos que assumir uma parcela da dor que gravita sobre o mundo, afirmou Albert Schweitzer.

INTERESSE OU VOCAÇÃO DE SERVIR?
O dever é uma coisa muito pessoal; decorre da necessidade de se entrar em ação, e não da necessidade de insistir com os outros para que façam qualquer coisa.
Madre Tereza de Calcutá
Diz Richard Simonetti que a vocação de servir começa no interesse de receber. Em princípio nós somos mercadores. A gente vende um produto, que é a prática do bem, para ser feliz. É aquela velha história de quem dá aos pobres, empresta a Deus.
No primeiro momento a gente trabalha em favor do próximo porque quer receber benefícios. É a primeira etapa.
Na segunda etapa a gente trabalha por consciência de dever.
Ocorre tanto em meios religiosos, como em outros meios sociais.
É uma coisa de compromisso, de dever. As pessoas sentem que precisam fazer algo em favor do próximo.
E finalmente, na última etapa é a vocação de servir. Madre Tereza de Calcutá, Albert Schweitzer, Oskar Schindler, dentre milhares de outros abnegados da humanidade, pontificaram no campo do bem.
Esses são naturalmente bons... Servem por vocação.
Não estão pensando em receber benefícios e não o fazem por consciência de dever. Fazem por amor.
Em que situação nos encontramos? Fazemos o bem por interesse, por dever ou por amor?
Não nos preocupemos com isso. No começo é assim mesmo.
Comecemos por aí. Não faz mal que estejamos fazendo o bem por interesse. Um dia acabaremos fazendo por consciência de dever e,
lá adiante, acabaremos fazendo por amor.

ENCERRAMENTO
O exemplo maior de quem perdeu a vida pela humanidade é o do próprio Cristo. Espírito superior, responsável pela humanidade terrestre, não precisaria ter vindo pessoalmente para passar por aquilo que passou.
Veio pelo seu profundo amor pelas criaturas humanas.
Literalmente deu sua vida para que se implantasse na Terra uma nova ordem filosófica.
Fazer ao semelhante o que gostaríamos que fosse feito a nós.
E se pudéssemos resumir, de alguma forma, a proposta de Jesus de perdermos a vida seria através deste texto de Paulo:
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.
Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
Paulo, 1ª Epístola aos Coríntios
Queremos encerrar com um texto de Richard Simonetti constante do seu livro Para ganhar a vida:
Ao longo da codificação espírita Allan Kardec situa o egoísmo como elemento gerador de todos os males humanos.
Ao proclamar a máxima Fora da Caridade não há Salvação, oferece-nos o roteiro para o superarmos.
Preocupando-nos em socorrer o próximo, começamos a derrotá-lo.
A duras penas vamos aprendendo essa lição.
Espíritos como Albert Schweitzer (e outros aqui citados) não precisam de orientação nesse sentido.
Perfeitamente integrados nos objetivos da existência, já nascem com a vocação de trabalhar em favor do próximo.
Desconhecendo o egoísmo, mal podem esperar pelo privilégio de servir.
(*) Médicos sem fronteiras, organização internacional não governamental e sem fins lucrativos que oferece ajuda médica
e humanitária a populações em situações de emergência.