Do Aquém e do Além- Sidney Fernandes

DO AQUÉM E DO ALÉM

- Sidney Fernandes


1 – Síndrome de Estocolmo
Por que muitas mulheres que sofrem agressões de seus cônjuges recusam-se a denunciá-los e a processá-los? Há situações em que elas recebem recursos legais ou familiares para abandonar o agressor e preferem continuar convivendo com ele, mesmo em atmosfera de medo e ameaças.
Do ponto de vista psicanalítico, trata-se de um estado psicológico pontual em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia, amizade ou até mesmo amor pelo seu agressor.
Em 23 de agosto de 1973, Jan-Erik “Janne” Olsson entrou, encapuzado e armado com uma metralhadora e explosivos, num banco localizado no centro da capital sueca. Durante seis dias, Olsson e outro criminoso chamado Olofsson lá mantiveram quatro reféns, objetivando o atendimento de suas condições: três milhões de coroas suecas, um carro e caminho livre para sair do país.
Enquanto eram monitorados, o que aconteceu durante todo o tempo do sequestro, um fato estranho chamou a atenção das autoridades suecas: reféns estabeleceram laços afetivos com os sequestradores. Kristin — porta-voz dos reféns — manifestou claramente sua simpatia pelos assaltantes, chegando a dizer que confiava em Olsson e viajaria por todo o mundo com ele.
No sexto dia a polícia soltou gás lacrimogênio na abóbada de segurança do banco, onde todos haviam sido isolados, e em poucos minutos Olsson e Olofsson se renderam, sem deixar nenhum ferido.
Esse estranho e peculiar comportamento de identificação emocional entre opressores e vítimas foi denominado pelo criminologista Nils Berejot, que colaborou com a polícia durante essa tentativa de roubo seguida de sequestro, ocorrida na Suécia, como Síndrome de Estocolmo.
– Dona Flor e seus dois maridos
De todos livros do brasileiro Jorge Amado, um dos que mais recebeu adaptações para cinema, TV, teatro, rádio e histórias em quadrinhos foi, sem dúvida, Dona Flor e seus dois maridos.
Conta a história de Vadinho, sua esposa Dona Flor e do segundo marido, um farmacêutico pacato e religioso chamado Teodoro. Vadinho morre em pleno carnaval de rua da Salvador dos anos quarenta. Seu espírito retorna e passa a atormentar Dona Flor, que procura um pai de santo da umbanda, para afastá-lo e lhe dar paz, no novo casamento.
Com um coro de atabaques e agogôs, o espírito começa a ser levado, a fim de libertar Dona Flor de seus tormentos. Nesse exato momento, Dona Flor, que por Vadinho ainda é apaixonada, interfere decididamente em favor do seu obsessor.
A história termina com Dona Flor se convencendo de que deve viver com os dois maridos, que, juntos, trazem o que ela sempre procurou: o homem honesto e companheiro de carne e osso e o amor do seu primeiro marido, proveniente de um mundo metafísico.
Poderia, o amor ou a simpatia por um opressor ou obsessor ocorrer também entre encarnados e desencarnados? É o que veremos agora em mais um episódio envolvendo os personagens deste livro.
– Apuros de um morto
— Maria, Maria, onde você está, Maria?
Quem assim se expressava, desesperadamente, era um desventurado espírito, comunicando-se em reunião mediúnica do Grupo Espírita Emmanuel, do qual fazem parte os médicos Ana Clara, Galton — seu marido — e Constantino, amigo de ambos. 
Irmão Procópio, mentor da casa espírita, explicou, pela via medianímica, que se tratava de espírito desencarnado há pouco tempo, procurando pelo objeto de sua obsessão. Infelizmente, essa entidade, não obstante ter vivido em relativo equilíbrio, ao lado da esposa, durante os últimos trinta anos, ao desencarnar, defrontou-se com suas trevas pretéritas.
— Busca a esposa, involuntariamente atormentada por ele, devido à forte sintonia de que mutuamente se nutrem, em função dos anos de parceria e convivência amorável que vivenciaram.
— Não estou entendendo — disse Galton. Como falar em processo obsessivo se eles se amam? Essa relação não deveria ser mais saudável? Esse espírito não deveria estar em situação melhor, pelos últimos anos vividos em função do bem?
— Perfeitamente, Galton — respondeu o mentor Procópio.
Graças ao longo cultivo da espiritualidade é que suas faltas passadas passaram por atenuantes. Não há verdugos à sua procura. Encontra-se em processo de catarse perante as suas próprias trevas. Lamentavelmente, terá que passar por processo de recuperação na espiritualidade, antes de voltar a unir-se com a sua amada esposa. Caso contrário, destilará sobre ela as substâncias tóxicas que ora está metabolizando, originárias de suas deficientes recordações.
Com efeito, embora não quisesse o mal, a situação desarvorada daquele espírito atormentado estava provocando comprometimentos na saúde física da companheira de muitos anos.
Sem mais delongas, Irmão Procópio desligou-se do aparelho mediúnico e imediatamente passou a traçar providências eficientes para afastar o desencarnado do organismo da torturada enferma, livrando-os da simbiose em que estavam vivendo desde o falecimento do marido.
Como se libertasse um tronco do abraço de uma parasita, Procópio afastou os fluidos que envolviam a pobre Maria, liberando-a da sintonia sufocante. Naquele instante, o comunicante caiu em lágrimas, irrompendo em intensa crise emotiva. O mentor espiritual apressou-se em desligá-lo do equipamento mediúnico, entregando-o para condução a organização próxima, em processo de transformação.
– Tormentos de uma viúva
Não foi difícil para os participantes da reunião mediúnica que acabamos de descrever identificar o desequilibrado obsessor e o objeto de suas perturbações. Assim que uma das voluntárias do atendimento fraterno conversou com Ana Clara, esposa de Galton, as coisas se aclararam e esta explicou:
— Quem se comunicou foi Ernesto — explicou —, esposo de Maria que desencarnou há alguns meses. Eu e Galton prestamos a ela a assistência possível, assim que se consumou o falecimento. Maria e Ernesto foram dois modelos de cônjuges.
Não apenas se amavam e se davam muito bem, como também eram parceiros e amigos. Chegaram a um momento da vida em que nenhum deles conseguia ficar longe um do outro, ou desenvolver qualquer atividade isoladamente.
— Os filhos haviam crescido, estavam bem casados e os netos estavam para chegar. Foi nesse abençoado clima de paz que surgiu a doença de Ernesto e o levou desta vida em poucos meses.
A consternação foi geral, mas Maria, dotada de bom senso e espiritualidade, conseguiu administrar bem a situação.
— Recentemente, no entanto, passados três meses, começaram a aparecer alguns problemas com Maria, que atraíram a nossa atenção.
— Que problemas? — indagou Constantino.
— Maria passou a ter visões, sob forma vaporosa e diáfana, algumas vezes bem claras, mas, geralmente de maneira vaga e imprecisa. Um clarão esbranquiçado, cujos contornos começaram a se acentuar, podendo ela distinguir os traços do rosto, a ponto de descrever com precisão a presença de Ernesto.
— Nos primeiros tempos de desencarne, até que o espírito se reequilibre, é compreensível que ele ainda permaneça por algum tempo jungido ao grupo familiar — opinou Galton. Ainda mais considerando que era um casal que se amava e se respeitava.
— Sim — concordou Ana Clara. Ocorre que essa proximidade passou a se configurar como verdadeira simbiose entre os dois, a ponto de provocar alguns transtornos físicos na viúva.
— Foi o que Procópio nos descreveu na comunicação que acompanhamos hoje — aduziu Constantino. Não seria o caso de fazermos uma visita à viúva?
— Concordo — disse Ana Clara. Estou, todavia, estranhando essa situação. Não concebo Ernesto querendo o mal de Maria. Eles se amavam e se respeitavam muito. Jamais iria querer o mal da esposa.
— Procópio nos informou que não se trata de um mal deliberado e sim uma espécie de pedido de socorro do desencarnado, diante de algumas surpresas que encontrou na espiritualidade — explicou Constantino.
— Surpresas?
— Consta que Ernesto estaria com remorsos de fatos pretéritos, assuntos já superados, mas que lhe trouxeram algum desconforto. Diante dessa situação inusitada, procurou a pessoa mais querida e de sua inteira confiança: Maria. Ao que tudo indica, contudo, deveremos encontrar a esposa liberta, pois hoje Ernesto foi abençoado com oportuno encaminhamento de Procópio a instituição socorrista do mais além.
O grupo de amigos — depois de contato telefônico de Ana Clara — dirigiu-se à casa de Maria. Encontraram-na feliz e descontraída. Tal qual o mentor espiritual havia anunciado, rompera-se a anormal ligação entre os cônjuges, até, pelo menos, a total recuperação de Ernesto.
Nossa breve história poderia terminar aqui, amigo leitor, com um final feliz para uma transitória situação. Ernesto permaneceria um tempo no plano espiritual, até adquirir condições para um futuro contato com a esposa, agora em condições saudáveis, sem o ranço da culpa ou da perturbação.
Graças aos abnegados amigos espirituais e aos voluntários do Grupo Espírita Emmanuel, dedicados ao esclarecimento e socorro de encarnados, e, principalmente, de mortos que — mesmo involuntariamente — voltam do além para perturbar os vivos.
Lamentavelmente, não foi bem assim que aconteceu...
– Estocolmo entre espíritos
Inspirado no capítulo Em Serviço Espiritual, do livro Nos Domínios da Mediunidade, de André Luiz Após o socorro do grupo mediúnico, as disposições de Ernesto melhoraram, a ponto de poder receber, de bom grado, o eficiente tratamento de instituição socorrista espiritual. Se assim as coisas tivessem sequência, ao cabo de mais alguns meses, se assim os mentores maiores julgassem possível, o convalescente até poderia visitar sua esposa, refeita e feliz.
Atente, amigo leitor, para esta narrativa de Irmão Procópio.
— Quando encarnados e desencarnados se prendem uns aos outros, podem ocorrer situações desagradáveis que indicam uma espécie de fascinação mútua. Achava-se Ernesto em tratamento quando, em noite de desdobramento espiritual, pela atuação do sono, surgiu Maria, inesperadamente, assim clamando:
— Ernesto, Ernesto! Por que você não está ao meu lado?
Volte imediatamente para nossa casa!
— Não estou entendendo — disse Constantino,
interrompendo a narrativa do guia espiritual. Estamos falando da mesma Maria que recebeu o nosso socorro, para que a livrássemos dos fluidos enfermiços — ainda que involuntários — do seu companheiro Ernesto, desencarnado?
— Sim — respondeu sorrindo Irmão Procópio.
— Não a encontramos reequilibrada e conformada, depois que encaminhamos o seu amado para o almejado tratamento nos planos celestes? Não está ela interessada em seu próprio reajustamento?
— Isso é o que ela julga querer. A razão, no entanto, nem sempre acompanha a emoção, seja em território do além, como do aquém — explicou Procópio, espirituoso. No íntimo, ressente-se da falta do companheiro querido, alimentava-se de seus fluidos, a ponto de animar-se a ir em sua busca.
— Milhares de pessoas são assim. Registram doenças de variados matizes e com elas se adaptam para mais segura acomodação com o menor esforço. Dizem-se prejudicadas e inquietas, todavia, quando se lhes subtrai a moléstia de que se fazem portadoras, sentem-se vazias e padecentes, provocando sintomas e impressões com que evocam as enfermidades a se exprimirem, de novo, em diferentes manifestações, auxiliando-as a cultivar a posição de vítimas, na qual se comprazem. Médiuns existem que, aliviados dos vexames que recebem por parte de
entidades inferiores, depressa como que lhes reclamam a presença, religando-se a elas automaticamente, embora o nosso mais sadio propósito de libertá-los.
— Síndrome de Estocolomo na espiritualidade — atalhou Constantino.
— E o que será do casal a partir de agora? — perguntou Galton, ansioso por novos conhecimentos.
— Maria acordará, no corpo carnal, pela manhã, e se lembrará vagamente de haver sonhado com o marido. Ernesto retornará ao seu tratamento espiritual. Ambos, no entanto, passarão por novas abordagens de nossos técnicos espirituais.
— Com que finalidade? — indagou Constantino, curioso.
— A de modificar-lhes as disposições espirituais e favorecer a criação de novos pensamentos, para que essas criaturas aprendam a nutrir somente hábitos salutares, sem escravidão mútua, que geralmente obsessores e obsidiados mantêm reciprocamente.
Nos Domínios da Mediunidade, André Luiz.
– Na Intimidade Doméstica
Fiquemos com os ensinamentos de Emmanuel, aplicáveis às relações domésticas.
O viajante compassivo encontra o ferido anônimo na estrada. Não hesita em auxiliá-lo. Estende-lhe as mãos. Pensa-lhe as feridas. Recolhe-o nos braços sem qualquer ideia de preconceito. Condu-lo ao albergue mais próximo. Garante-lhe a pousada. Olvida conveniências e permanece junto dele, enquanto necessário. Abstém-se de indagações. Parte ao encontro do dever, assegurando-lhe a assistência com os recursos da própria bolsa, sem prescrever-lhe obrigações.
***
Jesus transmitiu-nos a parábola, ensinando-nos o exercício de caridade real, mas, até agora, transcorridos dois milênios, aplicamo-la, via de regra, às pessoas que não nos comungam o  quadro particular. Quase sempre, todavia, temos os caídos do reduto doméstico.
Não descem de Jerusalém para Jericó, mas tombam da fé para a desilusão e da alegria para dor, espoliados nas melhores esperanças, em rudes experiências. Quantas vezes, surpreendemos as vítimas da obsessão e do erro, da tristeza e da provação, dentro de casa!
Julgamos, assim, que a parábola do bom samaritano produzirá também efeitos admiráveis, toda vez que nos decidirmos a usá-la, na vida íntima, compreendendo e auxiliando aos vizinhos e companheiros, parentes e amigos, sem nada exigir e sem nada perguntar.
Fontes consultadas:
Nos Domínios da Mediunidade, André Luiz Estudando a Mediunidade, Martins Peralva Luz no Lar, Emmanuel
Dona Flor e seus Dois Maridos, Jorge Amado
Obras Póstumas, Allan Kardec
Síndrome de Estocolmo, https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADndrome_de_Estocolmo