Dura Lex, Sed Lex -Sidney Fernandes

DURA LEX, SED LEX
Sidney Fernandes


O brocardo latino dura lex, sed lex significa que, por mais que as leis sejam duras e severas, elas devem ser cumpridas, mesmo que exijam muitos sacrifícios. Como exemplo do uso da expressão cita-se o desconhecimento prévio de que um ato é crime. Mesmo ignorando o preceito — diz a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro — quem o descumpre a ele não poderá se escusar.
Fernando Sabino — um dos grandes nomes da literatura brasileira, a título de crítica ao sistema judiciário corrupto, criou uma nova expressão: dura lex, sed latex¸cuja tradução literal seria a lei é dura, mas estica.
Deixando de lado a irônica chacota do festejado Sabino e os tristes casos de corrupção, perguntaríamos: as leis devem ser cumpridas a qualquer custo? Ainda que ultrapassem a figura do infrator? E quando existe o arrependimento e a reparação?
Ao final deste artigo o amigo leitor terá conhecido quatro casos verídicos ligados a infrações e suas consequências. Será o momento de se perguntar novamente se as normas jurídicas não comportam exceções ao seu cumprimento.
A árvore
Dona Eulália, senhora de oitenta e dois anos, sempre cuidou bem da horta e das plantas do seu grande quintal. Espaço amplo, continha árvores frutíferas, arbustos e até um grande tanque, em que criava peixes ornamentais. Certo dia, notou que goiabeira, ressecada, que não mais produzia qualquer fruto, estava apodrecendo e ameaçava despencar, ferindo-a ou aos netinhos que ainda teimavam em subir em seus frágeis galhos. Não teve a menor dúvida. Forte e decidida, em pouco tempo colocou abaixo o velho tronco, que estava na iminência de desabar. Para seu azar, exatamente no momento em que a velha árvore caiu, com grande estrondo, passava um fiscal da prefeitura.
Autuada, eis nossa matrona diante do promotor público se explicando:
— O tronco já estava podre e a árvore estava dentro do meu quintal. Há crime em prevenir um acidente? — perguntou ela à autoridade judicial.
— Sim, Dona Eulália. Crime ambiental, que poderá sujeitála à pena de detenção e multa — respondeu Fernando, o promotor público.
Quando caiu a ficha, Dona Eulália tomou consciência da besteira que havia feito. Derrubar ou podar árvore, ainda que localizada dentro de propriedade particular, sem a autorização da autoridade competente, pode redundar na prática de crime.
Felizmente, o direito moderno permite o bom senso em situações semelhantes. Dona Eulália, depois de ouvir o sermão do promotor, conseguiu cancelar o processo, mediante o pagamento de cestas básicas, que foram encaminhadas a entidade assistencial.
A lei foi cumprida, de maneira conscienciosa, porém branda.
Em livros espíritas
Narra Hilário Silva a história de uma jovem senhora que entrou em uma livraria fazendo um grande pedido:
— Por favor, mande quinhentos reais em livros espíritas para o Dr. Fortes.
O vendedor estranhou, pois, o conhecido médico era um materialista convicto e não faria tal solicitação.
— Ele está sabendo da compra?
A senhora sorriu e entendeu a objeção. Resolveu esclarecermelhor o assunto.
— Há quatro anos eu trabalhava para esse bom médico e cometi uma falta grave. Surgiu-me a oportunidade de um excelente emprego, através de concurso, que me traria definitiva estabilidade e recursos para o tratamento do meu marido, que estava doente.
Ocorre que eu não dispunha do dinheiro para a inscrição e muito menos para comprar os livros de estudo. Procurando uma solução,
encontrei precioso vaso quebrado no caminho para o consultório.
Juntei os fragmentos, embrulhei-os em papel de presente e cheguei mais cedo ao trabalho.
— Eu sabia que o médico chegava como um furacão e me coloquei estrategicamente nas proximidades da entrada, com o presente em uma das mãos. Quando Dr. Fortes empurrou a porta o embrulho caiu no piso com enorme estardalhaço e os cacos deram a perfeita impressão de que a preciosidade havia se perdido naquele exato momento.
— O bondoso e correto cavalheiro, constrangido, examinou os restos da peça e logo concluiu que se tratava de caro objeto. Fez questão de me ressarcir com a importância de quinhentos reais.
Desconcertada, usei o dinheiro para concorrer ao cargo almejado e consegui ser nomeada para o serviço público.
— Arrumei a minha vida e cuidei da saúde de meu esposo.
Tempos mais tarde, conhecemos a Doutrina Espírita e compreendi o erro que eu havia cometido, embora para uma causa justa.
Procurei o Dr. Fortes e confessei minha falta. Ele ouviu-me com simpatia e respeito e não aceitou a devolução do dinheiro.
Benevolente, quis saber o que havia me modificado e me impelira à reparação do gesto infeliz. Quando soube que era a Doutrina Espírita, olhou-me espantado e disse que há tempos vinha se interessando por conhecê-la melhor. Abraçou-me e pediu que eu lhe desse um livro do nosso movimento, à guisa de amostra. Queria estudar os princípios que haviam revolvido o fundo da minha consciência.
— Por isso aqui estou, pedindo que leve ao seu consultório os livros que encomendei.
O vendedor olhou-a com curiosidade e disse que aquele exemplo o estava obrigando a pensar. Dois dias depois, passando novamente pela livraria, ela viu que o rapaz que a havia atendido estava separando outro pacote com vários livros. Indagado, sorrindo, disse à jovem senhora:
— Faço hoje igualmente o meu pacote com quinhentos reais em livros espíritas para oferecer a um amigo. Eu também tenho um caso para consertar.
O emprego
Gerente de uma rede de restaurantes estava entrevistando novo candidato a chef. Elogiou o prato por ele preparado para demonstrar suas habilidades na cozinha, dizendo:
— Uau! Acho que é o melhor Fettuccine Alfredo que comi em toda a minha vida. Você cozinha muito bem e se encaixa na vaga que temos. Falta apenas eu dar uma olhada na sua ficha.
Nesse momento, Ângelo, o candidato, demonstrou certa preocupação. Com razão, pois depois de saber que ele já havia cumprido sentença em uma penitenciária, o gerente descartou totalmente a contratação, alegando normas da casa. De nada adiantou Ângelo dizer que fora coisa de somenos importância, sem qualquer tipo de violência, e que ele mudara muito.
— As pessoas não mudam! Sinto muito, não posso contratálo — disse o gerente, ao mesmo tempo que pediu a Ângelo que se retirasse.
Em seguida o entrevistador subiu ao escritório central para informar o ocorrido a Chris, o proprietário.
Chris ficou chocado com a atitude de seu gerente e lhe contou que havia sido também um detento. E que na prisão aprendera a cozinhar com um colega de penitenciária e que, graças a essa ajuda,
pudera montar sua rede de restaurantes.
— Você está enganado, amigo. As pessoas mudam.
Sentindo-se profundamente constrangido e envergonhado, o gerente saiu da sala e ainda alcançou o ex-detento, pediu-lhe desculpas e o contratou. Nossa história não termina aí.
Quando o novo chef foi ser apresentado a Chris, houve uma surpresa. Ângelo era o colega que o havia ensinado a cozinhar na prisão. Abraçaram-se efusivamente.
— Agradeço muito — disse Ângelo a Chris — a oportunidade que estão me dando.
— Eu que agradeço — disse Chris. Não fora você e eu não teria tudo o que tenho.
***
As pessoas não são definidas pelo seu passado. Elas podem crescer e mudar para melhor.
Dhar Mann
***
O juiz
Doutor Aguinaldo havia sido promovido para uma cidade onde havia mais dois juízes. Ele iria assumir o comando de vários estabelecimentos que ficariam sob a sua responsabilidade. Assim que chegou, foi visitar de surpresa a cadeia local, que tinha um histórico de violência e rebeliões. Era um final de tarde e ele notou, ao entrar no presídio, que havia na carceragem uma caixa cheia de sacos de leite. Logo imaginou que ali havia alguma irregularidade.
Pensou:
— Esse leite seria destinado aos detentos e estava sendo desviado pelos funcionários da cadeia.
Imediatamente chamou o carcereiro que explicou:
— Alguns presos trocam a sua refeição noturna por esse leite, que será destinado às suas famílias. Muitos não têm direito ao auxílio-detenção e suas esposas e filhos chegam a passar fome.
— Como esse leite chega às famílias? — perguntou Doutor Aguinaldo, ainda desconfiado.
— Daqui a pouco começarão a chegar os familiares dos presos. Fazem uma fila fora da cadeia e nós entregamos a eles o que é arrecadado em troca das refeições noturnas.
Sensibilizado, Doutor Aguinaldo acompanhou a chegada daquelas pessoas, que estavam passando necessidades, porque muitos daqueles prisioneiros eram arrimos de suas famílias. A pena imposta a eles estava atingindo mulheres e crianças que nada tinham a ver com os crimes.
***
Ao assumir suas novas funções e apresentar-se para os outros dois juízes que, com ele, passariam a responder por aquela comarca judiciária, Aguinaldo expôs a triste situação por que estavam passando as famílias dos detentos. Homens de bem, cumpridores da lei, mas, ao mesmo tempo, pessoas dignas e sensíveis, imediatamente os dois ombrearam-se com novo colega, a fim de criar alguma maneira de minimizar aquele drama.
Doutor Antônio, o mais velho e experiente juiz, lembrou-se de novo dispositivo legal que permitia a utilização dos valores arrecadados com as conversões de prisões em multas, de crimes de pequena monta, sem violência ou ameaça à pessoa, desde que o agente preenchesse requisitos subjetivos para receber o benefício.
Os olhos de Aguinaldo brilharam de alegria. Estava ali o início de um projeto que poderia amenizar o sofrimento de muitas famílias de criminosos, que nenhuma ligação tinham com o crime.
A ideia teve positiva repercussão no fórum e junto à sociedade da nova comarca de Aguinaldo.
***
Passadas algumas décadas da implantação do plano, que ficou conhecido como Projeto Xavier, nome escolhido por Doutor Aguinaldo em homenagem ao grande e caridoso médium Chico Xavier, hoje ele se espalhou por várias cidades.
Um fato curioso: nas cidades onde o Projeto Xavier foi implantado, não existem rebeliões de prisioneiros. Com isso, órgãos superiores da magistratura passaram a estimular a criação de novos projetos da espécie, em várias comarcas brasileiras.
Em alguns locais há uma assistente social e muitos voluntários, que visitam as famílias dos presos e atendem suas necessidades mais básicas.
Para encerrar, tenho que lhe contar, amigo leitor, uma das muitas manifestações de reconhecimento recebidas por Doutor Aguinaldo, oriunda de um dos sentenciados, que o chamou no cantinho da cela e olhando para o juiz com os olhos marejados, disse:
— Eu queria agradecer a ajuda que o senhor está dando para minha família. 
Aguinaldo, emocionado, sabia que ali estava um criminoso.
Mas, acima disso estava um ser humano preocupado com a sobrevivência de sua esposa e filhos, sem nada poder fazer para sustentá-los. Gestos como esse encorajavam ainda mais esse honrado juiz a prosseguir em sua jornada meritória.
Aguinaldo continuou sendo fiel e rigoroso cumpridor das leis, mas jamais permitiu que as suas penas ultrapassagem a figura do sentenciado e atingissem seus inocentes familiares.
Que Deus continue abençoando as centenas de “aguinaldos” que existem em nosso planeta com suas atitudes humanas, generosas e dignas.
***
Dura lex, sed lex? Sem dúvida, as leis existem para serem executadas, doa a quem doer. No entanto, nos quatro casos que
apresentamos, as normas e regulamentos — jurídicos ou éticos — foram cumpridos, mas de maneira conscienciosa, humana e branda.
As leis continuarão normatizando o comportamento humano.
Jamais, no entanto, poderemos esquecer o exemplo de mansuetude do doce galileu, que, mesmo sabendo dos pecados daqueles que o
procuravam, não vacilava em curá-los e auxiliá-los. Prova disso era a maneira suave com que deles se despedia:
— Olha que já estás curado. Não peques mais, para que não te suceda coisa pior. João, 5:14
Procuremos seguir sempre o seu exemplo.
Referências: Almas em desfile, Hilário Silva; Vídeo Criminoso busca emprego num restaurante, Dhar Mann; Depoimento espontâneo do Doutor Aguinaldo (cujo nome, naturalmente, precisou ser trocado).