Estelionatários da fé.
-Sidney Fernandes
De longe, pude ouvir, quando me aproximava da caixa de supermercado, a atendente dizendo ao empacotador:
— Nosso pastor disse ontem que, se não juntarmos novecentos reais para a igreja, Jesus não vai abençoar nossa vida.
Não sei o que faço...
Atento e esperto, seu ouvinte disse, simplesmente:
— Que eu saiba, o céu não está à venda. E se estivesse, não seria por intermédio de um pastor esperto e mal-intencionado.
Senti-me como se ainda estivesse na Idade Média, quando as pessoas, apavoradas com o inferno descrito por Dante Alighieri, no livro Inferno, da trilogia A Divina Comédia, lotaram as igrejas e passaram a comprar indulgências, para se safar de seus pecados ditos irremissíveis.
Essas enganações datam de épocas mais remotas. À época de Jesus, escribas e fariseus ficaram indignados com suas curas, por sua intromissão nos negócios dos templos, que cobravam os favores do Céu. Não foi à toa que o Mestre repeliu com veemência os que negociavam as coisas de Deus, no templo de Jerusalém.
Alguns consideram essa passagem apócrifa, argumentando que jamais Jesus assumiria as atitudes agressivas anotadas pelos evangelistas Marcos e João, com o que concordo. Jesus era manso e equilibrado e jamais agiria daquela forma.
Sem dúvida, no entanto, ele repeliu a mercantilização que envolvia cerimônias e sacrifícios, mediante pagamentos que eram arrecadados pelo templo. É claro que esse firme posicionamento marcaria o início das reações e hostilidades do judaísmo contra Jesus e determinaria a sua morte.
O mundo antigo — informa Emmanuel — não compreendia as relações com Deus, senão por intermédio de oferendas e holocaustos. Esse misto de ignorância e vício acentuou-se após o século III, quando o imperador romano Constantino decretou o Cristianismo como religião oficial do Império Romano.
Para agradar gregos, romanos e bárbaros, vários rituais e influências foram incorporados à doutrina do Cristo, desfigurandoa.
Muito menos complicado do que praticar os ditames de Jesus era encontrar atalhos em direção a Deus, em forma de sacrifícios, lágrimas, promessas, confissões, indulgências ou outras formas ainda mais originais de absolvição. O culto às relíquias foi uma delas.
Movidos pela fé cega e a necessidade de prestígio às Igrejas do Império Romano, equivocadas autoridades eclesiásticas entenderam que os cultos aos corpos dos santos, às imagens, ao santo sudário, à arca santa, ao véu de Verônica, ao madeiro e ao próprio corpo do Cristo — dentre muitas outras idiossincrasias — teriam o condão de salvar almas pecadoras.
Quando os pedaços da cruz de Cristo começaram a se multiplicar e a se espalhar pelas mais distantes igrejas, quando as mesmas relíquias começaram a aparecer, simultaneamente em várias cidades, o reformador Calvino passou a denunciar as falsificações sagradas.
Pelos mesmos motivos, John Wycliffe, João Huss e Jerônimo de Praga se insurgiram contra as vendas de indulgências, disparando a reforma protestante, deflagrada em 1517 por um indignado monge alemão chamado Martinho Lutero.
Allan Kardec, ao fazer nascer uma doutrina de consciência livre, passou pelos mesmos dissabores do Cristo e dos reformadores da Idade Média, e somente não teve como destino a condenação à morte porque os tempos eram outros. Apenas os seus livros foram queimados, não suas ideias.
Não obstante, por ter acabado com a boquinha das explorações religiosas, por ter matado a morte e abolido o inferno eterno e as penas irremissíveis, sofreu sérias perseguições e calúnias. Uma vez destronado o diabo como eterna figura devotada ao mal, situação inadmissível diante da lei do progresso, não poderia mais a Igreja utilizá-lo como instrumento de manutenção de dogmas, por meio da repressão.
Era preciso — ensina-nos Hermínio Miranda — dotar o Espiritismo de uma estrutura ética. Não seria necessário criar uma nova moral, porquanto já existia a do Cristo, cujos evangelhos Allan Kardec ordenou, buscando apenas seus ensinamentos morais, montando com muito zelo e amor O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Assim agindo, o codificador resgatou a elevada concepção de Deus apresentada por Jesus, revelando-nos um Pai amoroso e justo, sensível a testemunhos de compreensão e amor, e não a sacrifícios, holocaustos, indulgências ou outras intromissões oriundas da ignorância e do vício.
Infelizmente, ainda hoje encontramos excentricidades e atalhos, na busca de criaturas por abreviar os caminhos para Deus ou criar argumentos para teses duvidosas, inclusive no meio espírita.
Em seu artigo Fraude Espírita, publicado na Revista Internacional do Espiritismo de abril de 2018, Marcus Vinícius de Azevedo Braga alerta-nos que muita gente está comprando gato por lebre ao compartilhar assuntos afetos ao intercâmbio mediúnico, por intermédio de fotos e vídeos, com falsas aparições de espíritos.
Da mesma forma que na Idade Média, os inescrupulosos espertos do mundo atual têm interesses políticos, financeiros, religiosos ou de conquista afetiva, embutidos em suas atitudes.
O que fazer para evitar semelhantes enganos que colhem desavisados e interessados em compactuar com a burla à justiça divina?
Diz-nos o articulista Marcus Vinícius, acima citado, que:
— a boa fórmula kardequiana do crivo da razão, do uso da lógica e da comparação entre diversas fontes, bem como com os conhecimentos sedimentados pela Doutrina Espírita, apresentam-se como boas medidas...
Conclui seu artigo lembrando que espíritos superiores não se detêm em questões comezinhas, concitando-nos a discutir, analisar, ponderar, conforme o legado espírita nos ensina, como forma de navegar por esses mares de práticas incorretas e informações incertas.
Fiquemos com Emmanuel, no livro Pão Nosso, quando nos alerta quanto à necessidade de trabalhar contra o criminoso engano.
A verdadeira felicidade somente será alcançada com o cumprimento de nossas obrigações, ainda que ao preço de heroicas decisões. O Senhor Supremo não nos pede sacrifícios e lágrimas, e sim ânimo sereno para aceitar a vontade sublime e colocá-la em prática.