Justiça, Humildade ou Subserviência? -Sidney Fernandes

JUSTIÇA, HUMILDADE OU SUBSERVIÊNCIA?
Sidney Fernandes


Recordando o grande político e jurisconsulto Rui Barbosa, confesso, amigo leitor, que na minha juventude impressionou-me sobremaneira o seu discurso proferido no Senado Federal, em 1914, principalmente estas duas frases:
— A injustiça, Senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas.
— De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantaremse os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.
Elas consubstanciavam toda a decepção e crítica de Rui Barbosa à República brasileira do começo do século XX e conclamavam os jovens aos brios da dignidade e da luta pela justiça.
Ocorre que, nessa mesma época, eu já estudava com muito afinco as obras espíritas, particularmente o Evangelho Segundo o Espiritismo, com as lúcidas interpretações de Allan Kardec aos ensinamentos morais do Cristo.
Como estes pensamentos, que resumem bem o ponto culminante das palavras de Jesus, que colocava, lado a lado, a humildade, o amor e o respeito:
— Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos.
— Aquele que se humilhar e se tornar pequeno como uma criança será o maior no reino dos céus.
— Todo aquele que se eleva será rebaixado e todo aquele que se abaixa será elevado.
Fiquei deveras confuso, pois, se de um lado Rui Barbosa me convidava ao estabelecimento de uma nova ordem de princípios e a lutar contra a injustiça dos homens, o Evangelho me dirigia para a mansuetude.
Ao ler a questão nº 932, de O Livro dos Espíritos, fiquei mais confuso ainda, quando Allan Kardec indagou:
— Por que, no mundo, tão amiúde, a influência dos maus sobrepuja a dos bons?
Responderam os espíritos:
— Por fraqueza destes. Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos. Quando estes o quiserem, preponderarão.
Estava feita, na minha cabeça, a grande desordem. Com quem eu deveria ficar? Com o evangelho do Cristo, com Rui Barbosa ou com a resposta dada pelos espíritos? O caro leitor há de convir que, na cabeça de um jovem adolescente, essa aparente divergência de conceitos era motivo para uma desesperadora dúvida...
Uma dúvida muito semelhante à ocorrida com um personagem que conheceu o respeitado intelectual, neste episódio.
Os Patos de Rui Barbosa
Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:
— Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa.
— Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo
denomina nada.
E o ladrão, confuso, diz:
— Dotô, eu levo ou deixo os patos?
A minha vontade, diante das dúvidas que os textos me suscitaram, seria a de perguntar, assim como o confuso ladrão fez a Rui Barbosa:

— Ser justo, humilde ou subserviente?
— Como conciliar a afirmativa dos espíritos de que quando os bons quiserem preponderarão, com a mansuetude da moral do Cristo?
Felizmente, a Doutrina Espírita sempre nos socorre.
Continuando a pesquisar sobre o assunto, encontrei preciosos textos que clarearam meu raciocínio.
Como este, de Chico Xavier, que começou a abrir minha cabeça: 
— A humildade não está na pobreza, não está na indigência, na penúria, na necessidade, na nudez e nem na fome. A humildade está na pessoa que, tendo o direito de reclamar, julgar, reprovar e tomar qualquer atitude compreensível no brio pessoal apenas abençoa.
As palavras de Chico me fizeram refletir na conduta de Jesus, que em nenhum momento deixou de ser humilde, e nem por isso foi conivente com o erro e com o mal ou tornou-se agressivo contra as demais pessoas. Os fariseus e os escribas o cercavam, muitas vezes, fingindo ser seus admiradores, com o intuito de prejudicá-lo, oprimi-lo e acusá-lo.
O que fazia o Mestre nessas oportunidades? Ele não se comportava como um tímido, não permitia que o menosprezassem e não era um subserviente passivo. Sabia ser humilde, mas, ao mesmo tempo, revestia sua mansidão de atividade e bondade, sem abdicar do espírito de justiça que, durante toda a sua passagem pela Terra, pregou e defendeu.
Em suma, Jesus Cristo era humilde, sem ser subserviente.
A Doutrina Espírita, que é a revivescência dos ensinamentos cristãos, nos ensina, em O Evangelho Segundo o Espiritismo:
Dizendo que o reino dos céus é dos simples, quis Jesus significar que a ninguém é concedida entrada nesse reino, sem a “simplicidade de coração e humildade de espírito”; que o ignorante possuidor dessas qualidades será preferido ao sábio que mais crê em si do que em Deus.
Em todas as circunstâncias, Jesus põe a humildade na categoria das virtudes que aproximam de Deus e o orgulho entre os vícios que dele afastam a criatura, e isso por uma razão muito natural: a de ser a humildade um ato de submissão a Deus, ao passo que o orgulho é a revolta contra ele. Mais vale, pois, que o homem, para felicidade do seu futuro, seja pobre em espírito, conforme o entende o mundo, e rico em qualidades morais.
***
Encerro este artigo com o entendimento de que Rui Barbosa jamais compactuaria com o ladrão e exigiria que ele deixasse ali os seus patos, em linguajar bem claro, com que ele se fizesse compreender, diante de seu confuso interlocutor.
Cristão, como era, Rui Barbosa, no entanto, não tinha absoluta intenção de incitar os jovens (da minha época e da sua época) a atitudes agressivas para defender a justiça que tanto pregava.
Sem ser absolutamente subserviente, o Grande Rui continuou a defender seus ideais democráticos e seus inabaláveis princípios, com a integridade moral que o caracterizava e com a postura elegante de quem agia sempre com respeito e isenção de preconceitos diante de seus adversários.
Um autêntico cristão, humilde, sem jamais ser subserviente.
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Fiquemos com Emmanuel:
Reconhecer a autoridade moral de Nosso Senhor Jesus Cristo e submeter-se, sem subserviência ou pieguice, mas com dignidade e respeito, ao controle dos ensinamentos evangélicos explicados pelo Espiritismo Cristão.


FONTES CONSULTADAS
Humildade não é subserviência, de Adauto Reami
Pontos do Escritor Espírita, de Emmanuel (Bênção de Paz)
Rui Barbosa, Discursos Parlamentares, Obras Completas (Vol. XLI – 1914 – Tomo III)
Os Patos de Rui Barbosa (www.pensador.com)
Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec
O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec