Lágrimas providenciais
Sidney Fernandes
Paulo nunca se dera muito bem com templos e igrejas. Sua formação religiosa limitara-se a noções elementares da mãe e da catequizadora de sua escola. Jamais cogitara de seguir qualquer religião ou prestar contas à divindade. Não que fosse má pessoa.
Ele simplesmente tinha seu jeito próprio de viver a vida.
É bem verdade que, depois da estabilidade financeira, haviam brotado em sua cachola algumas dúvidas filosóficas. Não se dispunha, entretanto, a esclarecê-las. E assim ia vivendo...
Até que viu aquele anúncio, em uma rede social, postado por uma creche mantida por entidade séria e bem conceituada. Era um desses apelos muito comuns da época natalina. Chamou sua atenção o fato de a entidade não estar pedindo dinheiro e sim buscando padrinhos que se responsabilizassem pelo presentinho de Natal de um de seus assistidos.
Interessou-se pelas atividades da creche e notou que as crianças eram atendidas em seu contraturno escolar. Enquanto os pais trabalhavam, os filhos iam à escola e depois passavam o resto do dia desenvolvendo atividades que melhoravam sua qualidade de vida e sua capacidade psicossocial.
— Está aí — pensou com seus botões — um trabalho que merece o apoio da sociedade. Quero participar desse projeto! — concluiu intimamente. O sistema sorteou uma criança e logo apareceu a carinha esperta e bem nutrida de Claudinha.
Sua tarefa seria comprar um kit padronizado, para que não houvessem privilégios ou diferenças entre os presenteados. Até aí tudo corria bem. O problema surgiu quando teve que cumprir o último item solicitado pela direção da creche: uma cartinha pessoal para a criança, que a motivasse a alcançar seus sonhos.
A princípio parecia fácil, pois, sendo bom redator, Paulo não teria dificuldades em criar um pequeno texto, com palavras de fácil entendimento para uma criança. Ao começar a escrever, no entanto, viu-se tomado de intensa e estranha emoção, a ponto de começarem
a borbotar lágrimas que escorriam abundantemente em seu rosto.
— O que é isso? — perguntou-se Paulo, atônito. Nunca fui mole a ponto de me deixar envolver por qualquer apelo emocional.
Mas as incômodas e inusitadas lágrimas teimavam em atrapalhar a sua digitação. Entre uma interrupção e outra, Paulo conseguiu concluir a cartinha, juntou-a aos presentinhos e partiu para o local onde deveria entregar a contribuição.
Era um centro espírita, localizado bem no centro de sua cidade, onde facilmente encontrou o posto de recepção para os participantes da campanha.
Recebeu-o, amavelmente, a assistente social que havia bolado a campanha e ali estava de plantão, não apenas para receber as doações, mas também para conhecer os participantes e convidá-los para a cerimônia de entrega dos mimos.
O pior aconteceu! Amavelmente, Cíntia, a assistente social, pediu permissão para examinar o enxoval e ler a cartinha dirigida à criança. Fazia parte da função dela manter a uniformidade dos presentes e examinar as mensagens dirigidas aos assistidos.
Paulo não teve como dizer não e, ao lado da assistente social, viu que as lágrimas debulhadas não eram somente dele. E formouse ali uma patética dupla, chorando de emoção diante de um despretensioso pedaço de papel.
Foi quando se aproximou Ricardo, presidente da entidade e orador da palestra que iria acontecer dali a alguns minutos no salão principal do centro espírita. Assim que se inteirou do ocorrido, Ricardo, em tom sério, olhou diretamente nos olhos de Paulo e disse:
— Não estranhe, amigo. Isso acontece muito e é absolutamente normal.
— Não está sendo nada normal para mim, pois em toda a minha vida, isso nunca aconteceu. O senhor tem alguma explicação? — afirmou gravemente Paulo.
Ricardo conduziu Paulo a um local afastado e explicou:
— Meu caro amigo. Mentores da espiritualidade nos ensinam que, quando fazemos o bem para uma criança, parentes que a amam e que já não estão mais entre nós, aproximam-se e nos abraçam, agradecidos pela ação que empreendemos em favor desse pequeno familiar.
— Foi exatamente o que aconteceu com você e com Cíntia.
Se você pôde detectar o carinho de avós ou tios de Claudinha, não deixe de comparecer à festinha de encerramento de final de ano,
pois outros abraços poderão acontecer. Peço sua licença agora, pois tenho uma palestra a proferir.
— Interessei-me por suas palavras, não vai me convidar para ouvi-lo?
— A honra seria muito grande e a nossa reunião é pública. Eu não quis misturar as estações, pois você poderia interpretar meu convite como uma tentativa de convertê-lo para as nossas crenças.
Se está interessado, venha comigo, nossa casa está sempre aberta para novos frequentadores.
Paulo assistiu à palestra de Ricardo e à que veio em seguida, na mesma reunião. Encantou-se com a irretorquível lógica da doutrina que ali era professada e respondia as suas mais caras e secretas dúvidas filosóficas. Compareceu à festinha da creche e sentiu-se abraçado, não somente por Claudinha, como também por seus acompanhantes espirituais e por toda a equipe daquele abençoado núcleo social.
O ateísmo agnóstico perdera um de seus candidatos. Em compensação, o estudo e o trabalho social espírita haviam ganhado um novo participante.
***
Em todos os setores da vida — diz Emmanuel —, a preparação e o mérito devem anteceder o benefício.
O generoso coração e o desprendimento de Paulo levaram-no para caminhos que somente o esforço no bem, a disciplina de sentimentos e a iluminação do raciocínio podem nos proporcionar.
Benditas lágrimas que regaram aquele bom espírito e o colocaram na direção da inesgotável fonte divina da felicidade!