Maniqueísmo : intolerância ou fanatismo? - Sidney Fernandes

Maniqueísmo : intolerância ou fanatismo?

- Sidney Fernandes


Maniqueísmo é sinônimo de extremismo. Ninguém é totalmente bom, nem é totalmente mau.
— O que fazer, quando a vida nos coloca entre a atenção para com a família e a dedicação à causa cristã?
Essa pergunta nos foi feita, em programa que mantemos com a participação dos telespectadores. Argumentou o consulente que demorou muito para encontrar a mensagem libertadora da Doutrina Espírita e, agora, não contava com a cumplicidade da esposa e dos filhos, no estudo e na prática de seus princípios.
Naturalmente, nossa orientação foi de que continuasse estudando o Espiritismo, priorizando, no entanto, a sua relação familiar. Mais do que isso, sugerimos que, seguindo uma doutrina de consciência livre, como espírita, ele jamais deveria ser intransigente e, se fosse o caso, deveria acompanhar sua esposa em outra atividade religiosa.
Nossos compromissos conjugais não nos autorizam à dedicação plena ao movimento espírita, quando nossos pares não nos acompanham. Por isso Paulo já dizia: É melhor que não se case. Mas, já que casamos, deveremos nos empenhar para manter o relacionamento conjugal, da forma mais equilibrada possível, fugindo da intransigência.
Entre a total entrega ao movimento espírita e à família, sem dúvida, procuremos cumprir compromissos adrede assumidos na espiritualidade, perante a parentela.
Convidemos o cônjuge a nos acompanhar no trato espírita, jamais, no entanto, descuidemos da família. Deus está em toda a parte. O fanatismo leva a nada.
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Referido impasse não retrata apenas uma particular situação familiar. Talvez ele seja um dos mais antigos e mais graves problemas da humanidade, que tenderá a assumir situação de gravidade, proporcionalmente inversa à ausência de tolerância e de condescendência para com os sentimentos e convicções entre os participantes de cada segmento social.
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Por reiteradas vezes, Jesus vivenciou a intolerância religiosa. Destaquemos a vez em que estava atravessando a Samaria, em direção a Jerusalém, onde esperava encontrar hospitalidade, não obstante a conhecida hostilidade entre samaritanos e judeus.
Seus mensageiros retornaram com a notícia de que ninguém queria hospedá-los, devido às divergências com Jerusalém, que os da Samaria mantinham por não aceitá-la como sede do Judaísmo.
Concluíram, de afogadilho, os samaritanos:
— Se eles estão indo para Jerusalém, pensam como os de Jerusalém. Não merecem nossa confiança. 
Intolerância ou fanatismo religioso?
Diante daquela atitude perante Jesus, o Mestre dos mestres, o Cristo, o Ungido, o Enviado e Salvador anunciado pelos profetas, dois discípulos, que sempre estavam prontos para decisões drásticas, escandalizaram-se.
Tiago e João, conhecidos como irmãos Boanerges, filhos de Zebedeu com Salomé, também chamados de filhos do trovão, por sua impetuosidade, pela ligação que tinham com João Batista, que, como sabemos, tinha um temperamento radical e agressivo — o maniqueísmo em pessoa —, disseram:
— Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?
Imagino, caro leitor — embora o evangelista Lucas assim não o registre —, que Jesus deva ter estranhado aquela absurda beligerância, indicando que os discípulos trovões nada haviam assimilado de seus ensinamentos de serenidade e mansidão.
— Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las.
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E nós, de que espíritos somos? Já aprendemos, com Jesus, a ser tolerantes e a repudiar o fanatismo? Ou ainda somos radicais e professamos o maniqueísmo?
O Espiritismo é a restauração da mensagem de Jesus, que volta a falar-nos. Sem a mensagem do Cristo e o extraordinário apelo de renovação por ele enunciado, o Espiritismo seria uma doutrina qualquer, como tantas outras, milenares, que já pregaram a imortalidade e a reencarnação e, mesmo assim, caíram no esquecimento.
Parafraseando Santo Agostinho, ao nos revelar como adquiriu o conhece-te a ti mesmo, por intermédio de suas reflexões diárias, será o caso de nos indagarmos:
— Há alguma coisa que eu tenha feito, no dia de hoje — que me tenha afastado do espírito de tolerância, serenidade e mansuetude do Cristo —, da qual eu tenha que me envergonhar?
De que espíritos somos? Filhos do trovão ou filhos da luz?
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Fiquemos com Emmanuel, que, no livro Fonte Viva, compara os samaritanos que repudiaram Jesus com os que, nos tempos atuais, ainda estranham o comportamento dos que se dedicam ao testemunho na obra divina, cerrando-lhes as portas do coração.
Os continuadores do Mestre costumam sofrer o mesmo radicalismo de outrora e são obrigados a enfrentar o maniqueísmo de hoje, nadando contra a correnteza da maioria desvairada.
Muitos desses, diante da intolerância religiosa ou do materialismo, são constrangidos a caminhar resolutamente pela estrada, amargando solidão e isolamento. Esses, em tempo não muito distante, mostrarão o sinal de quem, como disse Santo Agostinho, tomou o rumo da renovação interior para Deus.
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Não por acaso, Allan Kardec acrescentou, na bandeira do Espiritismo, ao lado dos fundamentais temas do trabalho e da solidariedade, a necessidade de aprendermos a cultivar a tolerância, ingrediente indispensável à nossa renovação:
— Trabalho, Solidariedade e Tolerância.
(Revista Espírita, 1869, e Obras Póstumas, 1890)