MIOPIA DA ALMA
Sidney Fernandes –
É necessário combater semelhante miopia da alma.
Emmanuel
A filha única de Madeleine, Julie, de quatorze anos, objeto de toda a sua ternura, havia falecido. Diante da tristeza inconsolável, a saúde da mãe começou a se alterar gravemente, de maneira que, em breve, ela poderia seguir os caminhos da filha.
Uma senhora de seu conhecimento aconselhou-a a procurar Allan Kardec, que a acompanhou, em busca de alívio para sua pena, a uma consulta mediúnica. Eram apenas os três: a mãe, a médium e Allan Kardec. Eis o resultado dessa sessão:
— Em nome de Deus, peço-te que venhas, minha filha querida, se Deus assim o permitir.
— Mãe! Estou aqui!
— És tudo mesma, minha filha, que me respondes? Como posso saber que és tu?
— Lili.
Lili era um pequeno apelido familiar, dado à jovem em sua infância, que não era conhecido nem da médium, nem de Allan Kardec, considerando-se que, havia vários anos, só a chamavam pelo nome de Julie. A esse sinal, a identidade era evidente. Não podendo dominar a emoção, a mãe explodiu em soluços.
***
Jesus seguiu os dois discípulos, que se dirigiam a Emaús, como se fosse um amigo oculto, fixando a verdade em seus corações, com palavras carinhosas e doces. Seguiram por boa parte do caminho em companhia daquele homem desconhecido, porém amoroso, sábio e simpático. Os dois aprendizes não o identificaram nem pelas palavras, nem pelo gesto afetuoso. Quando ele partiu o pão, dissiparam-se todas as dúvidas e creram.
***
João Batista, primo de Jesus, estava preso havia quase um ano.
Chamou dois de seus discípulos e mandou que lhe perguntassem:
1 Texto adaptado da Revista Espírita, de Allan Kardec, de janeiro de 1868.
2 Adaptação de comentário de Emmanuel, sobre a anotação do evangelista Lucas, capítulo 24.
— O Senhor é aquele que vem, ou devemos esperar outro?
A pergunta é surpreendente. Como assim? Ainda no ventre de sua mãe Isabel, diante da visita de Maria, ambas grávidas, João Batista agitara-se ao reconhecer o Salvador, à sua frente.
Mais tarde, ao batizá-lo no Rio Jordão, presenciara um fenômeno mediúnico, como se fosse a manifestação do Espírito Santo, quando uma pomba desceu sobre Jesus e uma voz ecoou dos céus:
– Este é o meu Filho bem-amado, em quem me deleito.
E mesmo sabendo dos milagres de Jesus, que havia devolvido a visão a cegos, o movimento a coxos, a purificação a leprosos, a audição a surdos e até ressuscitado mortos, como poderia João Batista ainda ter qualquer dúvida quanto à identificação de Jesus?
***
Eu não tinha muita certeza, mas no sonho parecia que eu estava me reencontrando com o meu querido vô Joaquim. O mesmo carinho,
o mesmo abraço, mas ele estava um pouco mudado. Parecia um pouco mais jovem, mas a atenção e o abraço eram os mesmos. Antes de acordar, vi a repetição do gesto de que eu não mais me lembrava.
Uma marca na minha infância. Levantou o quepe de motorista de praça e ali estava a moeda de cinquenta anos atrás, que ele sempre
trazia para mim, fixada em sua testa. Acordei chorando, pela clareza do reencontro.
***
Parece-nos, caro leitor, nos episódios aqui resumidos, que estamos diante de problemas de identificação dos personagens Lili, Jesus e meu querido avô Joaquim. Socorremo-nos em Emmanuel, o fiel exegeta do Evangelho, para tentar achar o porquê desses obstáculos para o reconhecimento.
Ele define essas dificuldades com a expressão miopia da alma, que é a incapacidade de sentir um coração bom. Ao permitirmos que, em nosso interior, falem mais alto o preconceito, insólitas crenças, valores materiais, fraquezas e opiniões humanas, afastamo-nos do serviço divino e das crenças renovadoras. E adverte:
— É necessário combater semelhante miopia da alma.
A dúvida da mãe, perante a filha, as dificuldades dos apóstolos e de João Batista em reconhecerem Jesus e minha hesitação em identificar meu querido avô, devem-se, segundo Emmanuel, às miopias dos nossos espíritos.
Aprendamos a abandonar, definitivamente, os óculos escuros de lentes sujas, que empanam os visores da alma e nos impedem de ver e sentir as almas das pessoas e não apenas suas aparências físicas.
Daí, então, mesmo ainda encarnados, como homens comuns, começaremos a ter a visão adequada para identificar a obra renovadora.
Ter uma religião e orar é muito importante. Mais importante, todavia, é adquirir a capacidade de olhar o próximo com generosidade e entender toda a extensão do que lhe vai na alma, superando para sempre a miopia espiritual.
Fiquemos com os caracteres do homem de bem, enunciados por Allan Kardec:
O espírito prova sua elevação quando todos os atos de sua vida corporal são a prática da lei de Deus e quando compreende, por antecipação, a vida espiritual.
Pão Nosso, Emmanuel.
Questão 918, de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.