Nem tanto ao mar...- Sidney Fernandes 

Nem tanto ao mar...

- Sidney Fernandes 


Em certa ocasião, Kardec foi procurado por uma médium, que lhe mostrou comunicação recebida de Jobard. Esse espírito, quando encarnado, havia sido um dos colaboradores de Kardec na codificação. Nessa mensagem, Jobard recomendava àquela médium que, considerando suas dificuldades financeiras de viuvez, passasse a cobrar por suas atividades mediúnicas.
Era uma questão delicada que Kardec não quis responder de imediato. Inspirado pelo bom senso que o caracterizava, enviou cartas a outros médiuns da França e de outros países da Europa, indagando sobre a licitude da pretensão. E as respostas vieram cada qual com sua forma de expressão, mas únicas no conteúdo:
- Dar de graça o que de graça recebemos. Que a médium tivesse confiança em Deus, pois suas necessidades financeiras não passavam despercebidas da espiritualidade e seriam solucionadas de outra forma.
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No ditado Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, a sabedoria lusitana está se referindo, naturalmente, ao equilíbrio e ao bom senso. E quando se fala em bom senso logo nos lembramos da adjetivação utilizada pelo mundialmente conhecido astrônomo Nicolas Camille Flammarion a Allan Kardec, codificador da Doutrina Espírita: o bom senso encarnado.
E como às vezes nos falta esse bom senso... Bemintencionados e a pretexto de acelerar o processo evolutivo de irmãos em provação que nos procuram, vamos com muita sede ao pote e, como diria meu pai, botamos os pés pelas mãos.
Queremos que evoluam, como diria a expressão portuguesa, utilizada para expulsar desajustados ao som de tambores, a toque de caixa, isto é, com toda a pressa possível.
Ignoramos preciosas recomendações como a da Questão 800, de O Livro dos Espíritos:
Conhece bem pouco os homens quem imagine que uma causa qualquer os possa transformar como que por encanto.
A transformação, pois, somente com o tempo, gradual e progressivamente, se pode operar.
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De vez em quando, empolgados com a intenção de acelerar o progresso das pessoas, nós oradores, escritores e dirigentes, acabamos por desrespeitar o bom senso de Kardec, achando que as transformações possam ser atropeladas.
Com isso, surgem situações que precisam ser tratadas com muito cuidado. O que é preciso: assumir linha dura ou assumir a postura laissez faire, isto é, deixar do jeito que está para ver como é que fica?
Nem uma coisa nem outra. Nem a postura excessivamente liberal e condescendente, nem a atitude medieval, inquisitorial, como se fôssemos donos da verdade.
Ocorre que, no afã de propagar a Doutrina Espírita, às vezes nos esquecemos do ritmo de cada um e que cada criatura tem o caminho que lhe é próprio.
Daí, exagerando em nosso entusiasmo, ao invés de impulsionar para o progresso, criamos obstáculos à transformação.
Neio Lúcio, no livro Jesus no Lar, narra uma notável história a respeito de um homem que se recolheu a uma gruta isolada, em plena floresta, a pretexto de servir a Deus. Ali vivia, entre orações e pensamentos que julgava irrepreensíveis, e o povo, crendo tratar-se de um santo messias, passou a reverenciálo com intraduzível respeito.
Se alguém pretendia efetuar qualquer negócio do mundo, dava-se pressa em buscar-lhe o parecer.
Achando que as pessoas deveriam imitá-lo, a fim de conquistarem um dia o paraíso, passou a tirar o entusiasmo de qualquer pessoa que se atrevesse a tomar alguma iniciativa de vida.
Empreendimentos comerciais, casamentos, cargos públicos, festas beneficentes, tudo recebia severas críticas desse pretenso sábio. Todos recebiam vigorosas cargas de desânimo e passavam a partilhar de seu ócio e de sua paralisia de alma.
Com a morte, esse sábio foi conduzido a terrível purgatório de assassinos. Em pranto desesperado indagou, à vista de semelhante e inesperada aflição, dos motivos que lhe haviam sitiado o espírito em tão pavoroso e infernal torvelinho.
Recebeu o esclarecimento de que, se não fora homicida vulgar na Terra, era ali identificado como matador da coragem e da esperança em centenas de irmãos em humanidade.
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Ninguém pode se arvorar em transformador do mundo.
Aquele que efetivamente promoveu essa mudança, jamais impôs.
Sempre respeitou as falhas de cada um, aguardando pacienciosamente o momento certo de sua conversão para o bem.
Os sãos não precisam de médicos. (Mateus 9:12)
É claro que devemos lutar para vencer os defeitos e adquirir virtudes, se pretendemos aproveitar esta existência para evoluir e desfrutar um pouco de equilíbrio e paz.
No entanto, o próprio Cristo sabia que tudo tem a sua hora certa e que assim como a natureza, nossa jornada evolutiva não dá saltos.
Sejamos humildes e cautelosos perante as pretensões e imperfeições alheias, evitando a carga demasiada que mata as esperanças ou a condescendência exagerada que ignora a necessidade do trabalho e do progresso.
Inspiremo-nos no bom senso de Kardec e na mansuetude do Cristo.