O Passado me Condena? - Sidney Fernandes

O PASSADO ME CONDENA?

- Sidney Fernandes


Não se vendem cinco passarinhos por dois ceitis? E nenhum deles está esquecido diante de Deus.
Lucas, 12:6
De que belo cobrador os evangelistas nos dão notícias! Ora ele nos ameaça dizendo que teremos que pagar até o último ceitil, ora cobra os cinco passarinhos, que não estão esquecidos... Que implacável coletor o Evangelho nos apresenta! É de se deduzir que o resgate de nossas faltas será cobrado pela divindade, mais cedo ou mais tarde, sem perdão de nossas dívidas? Certo? Deus, afinal, vinga-se dos crimes que cometemos? Analisemos melhor esse assunto...
Narra Allan Kardec, em O Céu e o Inferno, o tormento de Antoine Bell, que vivia suplicando ao seu fornecedor — um doutor em medicina e farmacêutico — que lhe informasse em que época lhe teria vendido um suposto veneno, que havia utilizado em um suposto assassinato. Por isso, Bell perdia o sono, batia no peito e exclamava em delírio: — Quereis me enganar. Eu me lembro...
Isso é verdade...! Atormentado, aparentemente sob o jugo de algum torturador, deixou-se falir diante da tentação à prova do suicídio.
Na vida anterior, realmente Bell havia envenenado um desafeto. Submetido ao tormento da visão contínua de sua vítima, fruto do remorso, depois de muitos anos conseguiu se livrar desse tormento, por suas preces e sincero arrependimento. Ficara apenas uma vaga intuição relativa à falta anterior, cuja lembrança serviulhe de alerta para que não reincidisse no mesmo crime.
Surgiu, porém, um Espírito obsessor e vingativo, pai de sua vítima, que não teve a menor dificuldade para atormentá-lo e fazêlo reviver as lembranças do passado. Embora em alguns momentos Bell sentisse o apoio de seu Espírito protetor, pouco a pouco foi se tornando fascinado pelo obsessor e por ele foi impelido ao suicídio.
Sua fraqueza para resistir aos tormentos do perseguidor deveu-se — como acontece com quem tem culpa em cartório — à fragilidade de que nos revestimos, quando atentamos contra a lei divina e fazemos o mal. Ficamos, como diria o vulgo, com telhado de vidro, sujeitos à mais leve intempérie e suscetíveis às perseguições alheias.
Perguntaríamos, preocupados com essa vulnerabilidade:
— Por causa de uma dívida do passado, pode um Espírito obsessor nos levar ao suicídio? Castigo de Deus? Negativo! A obsessão é um gênero de prova a que podemos estar sujeitos, mas não justifica, nem é desculpa para o suicida.
Deus mantém o nosso livre-arbítrio, deixando-nos livres para ceder ou resistir às sugestões do nosso perseguidor.
— É claro — afiança Kardec — que temos aqui um caso de atenuante, de menor punição, de menor responsabilidade, quando o suicida é instigado ao seu gesto extremo por outrem, diferente daquele que o comete por seu próprio impulso. Isso, porém, não o inocenta, porque se cede e se desvia do caminho reto é porque o bem não está ainda fortemente enraizado nele.
Aí está a resposta à nossa dúvida (ou dívida?) inicial: quando nos enraizamos no bem, pagamos os passarinhos e ceitis do passado. O arrependimento é a preliminar da reabilitação, relembra Kardec, mas não basta para livrar o culpado de suas penas.
Deus não se contenta com promessas; é necessário provar, por seus atos, a solidez do retorno ao bem (Allan Kardec, O Céu e o Inferno).
Os maus Espíritos continuarão nos perseguindo até que nos sintamos suficientemente fortes para resistir. Daí então nos deixam em repouso, pois sabem que suas tentativas serão inúteis (Allan Kardec, questões 468 e 478, de O Livro dos Espíritos).
As provas — ou se quisermos chamá-las de dívidas — se renovam a cada encarnação, até que consigamos vencê-las (ou pagá-las, até o último ceitil). E, ou chamando-a de remorso, ou de advertência, a vaga lembrança de um crime cometido em existência anterior nos acompanhará, pois as nossas encarnações são solidárias umas com as outras.
O culpado é punido pela sua própria falta e a punição, em lugar de ser uma vingança de Deus, é o meio empregado para fazêlo progredir (Allan Kardec, O Céu e o Inferno).
Deus não nos cobra, nem se vinga. Dá-nos a faculdade de nos melhorarmos gradualmente, sem jamais nos fechar a porta do resgate de nossas faltas. Caber-nos-á persistir no bem e colocar toda a nossa confiança em Deus. Dessa forma, estaremos pagando nossas contas e nos prevenindo dos infelizes que queiram suscitar em nós os seus maus pensamentos.