O Velho canalha -Sidney Fernandes – 

O VELHO CANALHA
Sidney Fernandes – 


Indaga Lisandro: — Onde estás, orgulhoso Demétrio? Fala! — William Shakespeare, em - Sonho de Uma Noite de Verão
Reencontrei-me com o velho canalha. Assim que o vi, relembrei-me de todo o passado. A arrogância, a ignorância embutida nas fanfarronices, a rispidez no trato e o indefectível orgulho, expressado no tom autoritário das atitudes imprudentes e imprevidentes.
Felizmente, por indiferença, jamais me abalancei a investigar suas atuais condições de vida. Ele que vivesse sua vida, à distância, desde que não tornasse a me agredir, ameaçar ou complicar minha vida familiar.
Até por reflexo condicionado, que nos protege das coisas mais desagradáveis, desta ou de outra vida, a distância era recomendável.
E quanto aos fatos mais sérios, que, aos olhos do homem comum seriam imperdoáveis, por terem atingido criaturas gratas ao meu coração?
Funcionou o perdão de Jesus, corroborado pelo protagonista de O Monge e o Executivo, de James C. Hunter, que nos aconselha a jamais impingir ao agressor as dores de que fomos vítimas. Ele que se entenda com a divindade. Essa indulgência, todavia, não pressupõe confiança. Quem nos machucou, fica à distância, pois temos o direito de nos preservar e nos defender das agressões alheias.
***
Um dos personagens de Hunter, de O Monge e o Executivo, achava um absurdo o amor ao inimigo ou desafeto. Desabafava:
— Amar nossos inimigos? Amar Adolf Hitler? Amar a Gestapo? Amar um assassino? Como Jesus poderia ter ordenado que as pessoas fabricassem uma emoção como o amor?
Principalmente com relação pessoas nada amáveis?
— Uma noite — narra o personagem de Hunter —, vários colegas e eu nos reunimos para tomar umas cervejas na taberna local. Um professor de línguas disse algo parecido com: “— Sim, amar nossos inimigos”. Eu respondi: “— Que piada! Então tenho que amar um estuprador? ”
— O professor de línguas me interrompeu dizendo que eu estava interpretando mal as palavras de Jesus. Ensinou-me que o Novo Testamento foi originalmente escrito em grego e os gregos usavam várias palavras diferentes para descrever o fenômeno do amor. Falou de eros — atração sexual e desejo ardente —, de storge — afeição entre familiares —, de philos — amor fraterno — e de ágape — amor incondicional, baseado no comportamento COM os outros, sem nada exigir em troca.
— O amor de Jesus é o amor ágape, amor traduzido pelo comportamento e pela escolha, não o sentimento do amor. Jesus Cristo não queria dizer que nós devemos fazer de conta que as pessoas ruins não são ruins, ou nos sentir bem a respeito de pessoas que agem indignamente. O que ele queria dizer era que devemos nos comportar bem em relação a elas. Eu nunca tinha pensado nisso dessa maneira.
***
Uma das minhas filhas tinha aprontado uma arte imperdoável. Eu fiquei muito bravo com ela. Altiva, desafiadora, passou ao meu lado, no exato momento em que eu estava gostando muito pouco dela, em direção à rua. Nesse instante, detectei a aproximação, em alta velocidade, de uma moto. Porque eu estava com raiva dela, não a alertei do perigo?
Que bobagem! Ao passar por mim, segurei-a pelo braço, protegendo-a. Ela olhou para mim espantada e voltou para dentro de casa. Eu poderia estar muito bravo com ela, mas, naturalmente, continuava amando-a.
Foi aí, caro leitor, que entendi a lógica de Jesus:
— Amar o inimigo não é confiar nele, nem me confraternizar com ele, nem mesmo aproximar-me dele, expondo-me a novo perigo. Embora meu próximo seja difícil e eu não possa gostar muito dele, posso me comportar amorosamente com ele, posso ser paciente com ele, honesto e respeitoso, embora ele opte por comportar-se mal. Voltemos ao velho canalha...
***
Era ele mesmo que estava ali? Onde estava o velho arrogante e orgulhoso? Irreconhecível! Cercado de carinho e atenção.
Por questão de consciência, eu precisava alertar seus atuais protetores.
— Sabem quem é ele? — indaguei. Conhecem seu passado?
Sabem o que ele já aprontou? Sou testemunha ocular de seus desmandos, pois fui uma de suas vítimas.
Foi aí, caro leitor, que mesmo com a minha provecta idade, fui obrigado a engolir mais um ensinamento da vida.
Os protetores do meu antigo desafeto discorreram longamente sobre as minhas queixas, dizendo-se perfeitamente conscientes de que ele não havia sido flor que se cheira, como diria minha mãe. Mas que ele havia sofrido muito, era outra pessoa e, mesmo que seus atos de outrora não justificassem um bom tratamento, a eles somente importava as suas necessidades atuais.
Fui obrigado a admitir que os carinhosos guardiães do velho canalha estavam cobertos de razão. Vencido, falido, com sinais do mal de Parkinson.... Eu estava diante de um espectro de gente.
Onde estava o velho canalha? A vida finalmente o derrubara...
Aquietei meu coração, envolto pelo perdão daquelas abnegadas criaturas, como se fosse um manto de uma nova vida, que somente o amor pode fazer surgir.
Então tive a certeza de que ali não estava mais o velho canalha, e sim, um irmão, necessitado de compreensão e tolerância, embora no passado houvesse agido muito mal, como, aliás, deve ter exatamente acontecido com cada um de nós.


Fontes consultadas:
O Monge e o Executivo, de James C. Hunter
O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec
Novo Testamento, livro de Mateus