Por que sofremos? - Síndrome de Hamlet - Sidney Fernandes

POR QUE SOFREMOS?
Síndrome de Hamlet - Sidney Fernandes


Não permita que alguém o rebaixe tanto a ponto de você vir a odiá-lo.
Booker T. Washington
Todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão.
Mateus, 26:52
Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica, assemelhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha;
Mateus, 7:24
Nas rodovias norte-americanas, quando a velocidade de um veículo se destaca da dos demais, costuma-se dizer que o motorista está procurando multa. Seria a versão do ditado português macaco que muito mexe, quer chumbo. Segundo a mitologia grega, os que sobressaem pelo seu desprezo ao espaço alheio, pela falta de controle de seus impulsos ou por se inspirar em paixões exageradas, são fulminados pelos raios dos deuses, assim como acontece com edifícios e árvores mais altas.
Seguindo essa linha de raciocínio — seja ela válida ou não —, teríamos a explicação para as tragédias que envolveram os personagens de William Shakespeare, particularmente as da peça Hamlet, escrita entre 1599 e 1601, que conta a história de um príncipe dinamarquês.
Hamlet, um príncipe com insônia, passeia pelas muralhas de um castelo, quando é surpreendido pela visão do fantasma de seu pai, recentemente falecido, dizendo que foi morto pelo seu tio, Cláudio, que usurpou o trono e casou-se com sua mãe, a rainha Gertrudes. Sente-se na obrigação de atender a reclamação de desforra de seu pai — também chamado Hamlet —, mas precisa de mais tempo. A vingança é um prato que se come frio, raciocinava.
Depois de mergulhar em profunda melancolia, finge-se de louco para arquitetar a sua vingança.
Ignorava, o rancoroso jovem, a terceira lei de Newton: Toda ação provoca uma reação de igual ou maior intensidade, mesma direção e em sentido contrário. Em outras palavras, o príncipe estava, com o revide planejado, semeando ventos, para colher suas consequências.
Assim é que, depois da certeza da culpa de seu tio Cláudio, várias pessoas acabam sendo mortas, incluindo o grande amor de sua vida, Ofélia. Assassina Polônio, mata Laerte em um duelo e ao final também morrem Cláudio, sua mãe Gertrudes e ele próprio, Hamlet. A peça termina com a invasão da Dinamarca.
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Embora pretensamente ficcional, o texto de Shakespeare retrata a própria vida, os descalabros cometidos pelo ódio e pela vingança e, naturalmente, as colheitas das insanas semeaduras.
André Luiz, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, nos traz inúmeros casos semelhantes aos de Hamlet. Pinçamos um deles, para que o leitor se convença de que a arte imita a vida, infelizmente, no mais das vezes, no que ela tem de pior. 
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A vingança, também chamada por outros inúmeros nomes, como desforra, revanche, retaliação, represália, troco, desagravo ou corretivo, carrega o componente hybris, temática clássica grega, que pressupõe o desequilíbrio e o descomedimento, que se contrapõe à sofrósina, a virtude da prudência, do bom senso e do comedimento.
Muitas criaturas, a pretexto de fazer justiça com as próprias mãos, entendendo que a divindade está demorando para intervir, acabam por se igualar aos seus detratores e verdugos, ingressando nas raias do crime. Acabam contraindo, para si próprios, pesadas e aflitivas contas com a vida, que serão pagas à custa de muita luta e sacrifício e à conta de longo tempo.
Verdugo e vítima se alternam de posição, no transcorrer das encarnações. O encarnado, pela natural falta de liberdade da prisão do corpo, fica praticamente à mercê do perseguidor da hora, que insiste com sua vingança, mesmo sob as advertências de sua consciência e de valorosos mentores. Mais cedo ou mais tarde as posições vão se inverter, se algo não for feito para quebrar o pernicioso círculo vicioso. Obsessor e obsidiado quase sempre são protagonistas de passados escabrosos, que alimentam mútuos propósitos de vingança e são castigados por eles mesmos.
O desafio maior é transformar a prisão em que estão jungidos em círculo virtuoso. É como na guerra: — Você destruiu minha casa e minha família. Então agora farei o mesmo, destruindo seus prédios e seus filhos. A contrapartida será a destruição da cidade do outro, e assim por diante, até que se aniquilem, se não houver intervenção do plano espiritual.
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Exatamente como aconteceu com Odila, em pleno processo de vingança contra a sua desafeta Zulmira, conforme nos descreve  André Luiz .
O recinto foi invadido por vasto círculo de luz. Irmã Clara assemelhava-se a uma estrela trazida à Terra, com os dois braços distendidos em torno de Odila, em forma de asas. À distância, tinha-se a impressão de que a divina entidade havia se convertido em milagroso arco-íris. Ela ampliou a visão da obsessora, que, imediatamente, identificou-lhe a presença. Ofuscada pelo brilho da visitante, Odila caiu de joelhos e ouviu:
— Odila, que fazes?
— Estou aqui, vingando-me, por amor. Devo alijar a intrusa que me assaltou a casa e tomou-me o marido.
Texto adaptado de Entre a terra e o céu, de André Luiz – Francisco Cândido Xavier.
— Pobre filha! — revidou Clara, abraçando-a. A porta do lar terrestre, onde te supunhas rainha de pequeno império, cerrou-se com os teus olhos materiais.
— Não me fales assim! Odeio a infame que nos roubou a felicidade.
— Em lugar de forjares uma inimiga na sinistra bigorna da  crueldade, a verdadeira fraternidade ajudar-te-á a considerá-la uma filha suscetível do teu afeto e orientação. Por que não te dispões a clarear o próprio caminho, a fim de reencontrares o teu filho, em vez de te consagrares à vingança que te cega os olhos e enregela o coração?
— Meu filho! Meu filho!
— Basta uma prece de amor puro, para que venças a reduzida distância entre o teu sofrimento e o filhinho idolatrado.
Sob o patrocínio de irmã Clara, Odila foi internada numa instituição de tratamento, para reerguer-se.
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Sustentada nos braços de Clara, Odila pôde aproximar-se, finalmente, de seu filho:
— Meu filho! Júlio! Meu filho!
A mãe afligiu-se ao encontrar a criança que, mesmo na espiritualidade, portava úlcera tão grande em sua garganta. Jamais supusera a existência de tantas enfermidades depois da morte.
Procurou o mentor, ponderando que a reencarnação do filho seria medida urgente, para sua recuperação.
— Tens amizades puras na Terra? — indagou o mentor.
Os olhos de Odila faiscaram. Lembrou-se daquela contra a qual havia lutado e havia perseguido. Concluía, agora, num átimo,
que deveria superar qualquer aversão e antipatia e lutar em favor dela, Zulmira, para que a antiga inimiga se dispusesse a ser a mãe de seu filho, na encarnação de que tanto necessitava.
Decorrido algum tempo, Irmã Clara e Odila foram buscar Zulmira, para visitar Júlio, na espiritualidade.
— Será Júlio, meu Deus? — identificou a ex-obsidiada, espantada.
Foi nesse momento que a antiga perseguidora, por amor ao seu filho, ajoelhou-se diante daquela que fora sua vítima e rogou:
— Para ele rogo o teu socorro. Nosso pequeno precisa renascer, Zulmira. Poderás auxiliá-lo, recebendo-o como mãe?
— Estou pronta — disse a interpelada sem vacilar. Será meu filho, sim! ... Ó Senhor, ampara-me! ...
Abraçou o menino enfermo, aconchegando-o como se já fosse o seu filho.
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Diz Emmanuel (2) que existem pessoas que suportam as mais ingentes dores morais em favor do semelhante, para que a negação do homem seja bafejada pela esperança de Deus. Nem todo sofrimento, portanto, corresponde a uma falta cometida. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo Espírito, para concluir a sua depuração e ativar o seu progresso .
Os que se deixam contaminar pela síndrome de Hamlet, que optam por manter-se imersos na hybris — o componente grego da intransigência, do descalabro e do descomedimento —, infelizmente escolhem o longo caminho da dor e do sofrimento.
Por outro lado, os que escolhem a sofrósina — o componente grego que personificava a moderação, a discrição, o autocontrole e a vitória sobre as paixões desenfreadas —, assim como:
Religião dos Espíritos, de Emmanuel – Chico Xavier.
O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, Cap. V, item 9.
Corajosamente escolheu a personagem Odila, de André Luiz, sustam a dor, aliam-se à sobriedade e deixam que o amor e a misericórdia passem a reger os destinos do seu coração.
Estes, com certeza, estão caminhando para superar, definitivamente, a malfadada síndrome do sofredor personagem de William Shakespeare, o pobre e atormentado príncipe Hamlet.
A recomendação de Jesus — para que nos reconciliemos com adversários — não visa apenas à nossa presente vida, e sim, que nossas idiossincrasias não contaminem nossas futuras existências e nelas se perpetuem.
Feliz, pois, daquele que pode todas as noites adormecer, dizendo: nada tenho contra o meu próximo Simeão 
Mensagem assinada por Simeão — Bordéus, 1862 —, contida em O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, Capítulo X, item 14.