RIVAIL OU KARDEC?
Sidney Fernandes
Um professor de vinte e quatro anos de idade detectou falhas no sistema de estudos públicos e demonstrou graves distorções na palavra falada e escrita de alunos franceses. Mesmo os que haviam estudado a arte da eloquência e da retórica cometiam erros crassos e não sabiam a diferença, por exemplo, entre as palavras alléger e allégir (aliviar e desbastar), colorer e colorier (colorar e colorir), ou, ainda, entre emplir e remplir (encher e preencher), dentre muitas outras. Da mesma forma, formados na arte da palavra não sabiam escrever uma carta corretamente.
A língua e outros aspectos essenciais do conteúdo programático da escola pública francesa não foram as únicas preocupações desse mestre. Seu espírito de educador, plasmado pelas suaves mãos da Escola de Pestalozzi, em Yverdun, Suíça, objetivava o bem-estar da criança e as condições ideais para seu aprendizado.
O aluno deveria estar sempre envolto por atmosfera amigável e amorosa, em franco contraste com os castigos e atitudes punitivas, tão comuns na França do século XIX. Se com ele, e com tantos outros, o método Pestalozzi dera certo, e o tornara um intelectual saudável, digno e afável, por que não funcionaria com os alunos franceses?
Vejamos este texto, de sua autoria, datado de 1828:
É melhor não punir; uma simples observação amistosa, uma admoestação feita com doçura ou com energia segundo as circunstâncias, até um olhar, fazem mais efeito que uma punição.
Esse dedicado mestre, que assinava seus livros com o nome H.- L.- D. Rivail, mais tarde assumiria a personalidade do codificador da Doutrina Espírita com o pseudônimo de Allan Kardec.
Além do discernimento cultural, do amor à educação e da preocupação com a formação de criaturas dignas e honestas, o jovem Rivail já demonstrava, em seus pensamentos e manifestações intelectuais, em sua bagagem cultural, profunda identificação com a filosofia espírita que organizaria vinte e nove anos mais tarde.
Desde o início da gloriosa encarnação de codificador, seu espírito portava, latente, o germe da filosofia extraordinária que daria surgimento ao Espiritismo. Senão, vejamos a compatibilidade de seus escritos, datados de 1828, com seus textos, datado de 1857.
A fonte das qualidades morais se acha nas impressões que a criança recebe desde o seu nascimento, talvez mesmo antes, e que podem agir com mais ou menos energia sobre o seu espírito, para o bem ou para o mal.
O amigo leitor está encontrando alguma familiaridade no texto acima, do jovem Rivail, com alguma obra que já haja lido?
Observe este texto, dele mesmo, porém, investido da inteligência, da seriedade e do método experimental de que se revestiu, na condição de autor de O Livro dos Espíritos.
— Donde, porém, provirão instintos tão diversos em crianças da mesma idade, educadas em condições idênticas e sujeitas às mesmas influências? As que se revelam viciosas, é porque seus espíritos muito pouco hão progredido. Sofrem então, por efeito dessa falta de progresso, as consequências, não dos atos que praticam na infância, mas dos de suas existências anteriores.
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A respeito da educação dos pais, afirmava o jovem Rivail:
Não se veem todos os dias crianças educadas com os maiores cuidados, que nunca deixaram seus pais e que têm, no entanto, as mais funestas disposições.
Mais tarde, perguntou o experiente Allan Kardec:
— São responsáveis os pais pelo transviamento de um filho que envereda pelo caminho do mal, apesar dos cuidados que lhe dispensaram?
— Não! Responderam os espíritos.
— Porém, quanto piores forem as propensões do filho, tanto mais pesada é a tarefa e tanto maior o mérito dos pais, se conseguirem desviá-lo do mau caminho.
A respeito dos exemplos, afirmava Rivail, em 1828:
Há seres, diz-se, em que o vício parece inato. O que pode ainda sustentar esta opinião é que certas crianças, mesmo cercadas constantemente de maus exemplos, tornam-se entretanto boas pessoas.
Décadas mais tarde, indagou, na condição de Kardec:
— Se um filho se torna homem de bem, não obstante a negligência ou os maus exemplos de seus pais, tiram estes daí algum proveito?
— Deus é justo – responderam os espíritos.
A respeito da virtude e do vício, dizia o jovem Rivail:
Concluo, pois, das observações precedentes, que não nascemos nem virtuosos, nem viciosos; mas mais ou menos dispostos a receber e a conservar as impressões próprias a desenvolver os vícios ou as virtudes.
No mesmo sentido, perguntou Allan Kardec:
— Seguir-se-á daí que o homem de bem é a encarnação de um bom espírito e o homem vicioso a de um espírito mau?
Sim! — responderam os espíritos.
— Mas, dize antes que o homem vicioso é a encarnação de um espírito imperfeito, pois, do contrário, poderias fazer crer na existência de espíritos sempre maus, a que chamais demônios.
O assunto ideias inatas também foi abordado por ambos.
Rivail:
Sem dúvida, há disposições que são realmente inatas; aquelas que se ligam ao temperamento; tais como a vivacidade, a lentidão, a cólera, o sangue-frio, a agilidade ou a profundidade das ideias.
Kardec:
— Não é, então, quimérica a teoria das ideias inatas?
— Não — responderam os espíritos. Os conhecimentos adquiridos em cada existência não mais se perdem. Liberto da matéria, o espírito sempre os tem presentes.
Finalmente, sobre os hábitos, afirmou o professor Rivail:
Em resumo, a educação é o resultado do conjunto de hábitos adquiridos, esses hábitos são eles próprios o resultado de todas as impressões que os provocaram, e a direção dessas impressões depende unicamente dos pais e dos educadores.
Em O Livro dos Espíritos, afirma Allan Kardec:
— Não nos referimos, porém, à educação moral pelos livros e sim à que consiste na arte de formar os caracteres, à que incute
hábitos, porquanto a educação é o conjunto dos hábitos adquiridos.
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A grandiosidade de caráter, a capacidade intelectiva, a perspicácia, a agudez mental, as análises clarividentes, a metodologia racional-intuitiva e o profundo amor pela humanidade manifestaram-se, em Rivail, bem antes de se abeberar nos ensinamentos dos espíritos.
Esses predicados, acumulados em fecundas vidas anteriores e burilados na espiritualidade, despertaram com o seu nascimento, em 1804, e se consolidaram, gradativamente, à medida que foi compilando o Espiritismo.
Rivail encontrou, com a revelação dos desencarnados, a identificação com os seus paradigmas mais secretos e as soluções que procurara em toda a sua vida.
Em Kardec, encontramos um Rivail adrede preparado, durante séculos, para desincumbir-se da notável missão que recebera do Alto. Nosso reconhecimento ao jovem professor, que se tornou o codificador da Doutrina Espírita.
Referências: Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública, de H.- L.- D. Rivail; Obras Póstumas, de Allan Kardec.