UM MATERIALISTA CRISTÃO
Sidney Fernandes
Adaptação da página A Festa, do livro Carcereiros, de Drauzio Varella, e da página Um choque de realidade, do livro O grande desafio, de Richard Simonetti
Geralmente guardamos prudente distância de lugares desagradáveis. De uma prisão, por exemplo, onde o ambiente é contaminado pelo vício, pela maldade e pelo desespero.
Mas, não foi o que aconteceu com Doutor Osvaldo, que, logo depois de alcançar a estabilidade de sua promissora carreira médica, ofereceu-se como voluntário de um dos presídios mais temidos do sistema carcerário brasileiro.
— Esse não dura um mês... - profetizara Doutor Brasilino Cunha, experiente diretor daquela casa de detenção, que recebera o novo voluntário médico e já se acostumara com os fogos de palha que lá apareciam com entusiasmo passageiro.
Enganou-se redondamente. Doutor Osvaldo revelou-se uma das mais humanas, dedicadas e sensíveis criaturas que já adentrara naquelas muralhas. E durante os vinte e três anos que se seguiram, dedicou-se ao mundo dos detentos, sem qualquer compensação remuneratória.
E esse amor à medicina e essa dignidade profissional foram acompanhados de perto, em longo tempo de convivência, por Trovão, um detento que passou a auxiliar Doutor Osvaldo na enfermaria.
Por certo, pensava Trovão, Doutor Osvaldo deveria ser adepto de alguma rigorosa seita religiosa. Negativo! Era materialista de carteirinha. Acreditava no nada além da vida.
— Uai! Ruminava Trovão com seus botões. — Que recompensa ele procura, se nada ganha nesta vida e nada espera além da morte?
Foi a partir daí que Trovão passou a admirar ainda mais aquela alma boa, que cuidava até de quem não merecia, desinteressadamente.
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O tempo passou. Doutor Osvaldo nunca mais teve contato com Trovão. Vamos encontrá-lo saindo de uma festa de aniversário com sua esposa. Ao tentar entrar em seu carro, estacionado em escura ruela, viu-se cercado por um bando armado, com intenção de roubá-lo e sabe-se lá o que mais.
De repente, irrompendo da escuridão, aparece Trovão, gritando:
— Pode parar, cambada! Não estão reconhecendo o nosso benfeitor? Esse aí é o Doutor Osvaldo, que cuidava da gente lá na cadeia!
Imediatamente, todos abaixaram suas armas, pediram desculpas ao Doutor Osvaldo e sumiram na noite.
No dia seguinte o médico vai reunir-se com velhos agentes, que se tornaram seus amigos próximos durante os mais de vinte anos trabalhando no sistema penitenciário.
Contou a história da noite anterior. Queria localizar Trovão para agradecer sua oportuna e salvadora intervenção. Os velhos agentes se entreolharam, espantados, e um deles, respeitosamente, dirigiu-se ao doutor, dizendo:
— Deve estar havendo algum engano, doutor. Não devia ser o Trovão...
— Não há engano. Tenho certeza de que era ele. O mesmo físico miúdo, a mesma voz tonitruante e a mesma onça em posição de ataque tatuada no antebraço.
Novamente os velhos agentes se entreolharam.
— O que está havendo afinal? Não sabem como posso encontrar o Trovão? – insistiu Doutor Osvaldo.
— Doutor. Impossível que fosse o Trovão. Ele morreu há dois anos!
Não se sabe como ficaram as convicções materialistas do Doutor Osvaldo depois desse fato. Homem inteligente e perspicaz, deve ser refletido seriamente no assunto.
Doutor Osvaldo - um materialista com comportamento cristão! Graças a Deus!