Um Natal sem Prece Sidney Fernandes - 

UM NATAL SEM PRECE
Sidney Fernandes - 


O Natal no lar de Francisco e Maria Barbosa já era tradicional.
Todos os filhos reuniam-se, em volta da mesa farta, com crianças reinando e adultos felizes por mais um ano abençoado. Depois do intenso trabalho que as várias famílias haviam desenvolvido, agrupavam-se na velha casa os filhos, as noras, os genros, os netos e alguns familiares mais distantes.
Nada de excessos, principalmente um pouco antes da ceia, momento em que, respeitosamente agradeciam, em oração, pela harmonia familiar, pelas dificuldades superadas e pelo momento de respeito ao aniversariante: Jesus.
Levados pelo exemplo dos pais, os quatro filhos eram ligados a entidades beneficentes, com as quais colaboravam durante todo o ano. Era justo, no modo de pensar dos Barbosa, que o fruto de seus sucessos fosse estendido para outras criaturas, não tão favorecidas no atendimento de suas necessidades mais básicas.
Naquele ano, no entanto, um dos filhos, Bernardo, havia levantado uma objeção à tradicional prece liderada pelo velho Barbosa. De uns tempos para cá, Bernardo e a esposa Luciana passaram a afastar-se das orações do grupo espírita a que Francisco pertencia, desde longa data. Argumentavam que não se sentiam bem e que entendiam serem inúteis as orações do grupo. Diziam que Deus já sabia de tudo que precisavam e não queriam que seus filhos crescessem envoltos naquela atmosfera supersticiosa e, no seu entendimento, de hipocrisia religiosa.
Continuariam com as atividades filantrópicas, compareceriam à tradicional reunião natalina da casa de Francisco, mas no momento
da prece aguardariam, em outro cômodo, para depois se confraternizarem.
O velho Barbosa já havia visto aquele filme. Estudioso, lembrou-se de fato semelhante ocorrido com Allan Kardec, no distante século XIX, quando um grupo de dissidentes apresentou a mesma objeção. Francisco sentia na própria pele, agora, as mesmas dificuldades morais sofridas pelo codificador, no afã de manter a doutrina nascente unida, embora os entraves que não paravam de surgir.
Maria, Francisco e os demais irmãos acharam absurdo aquele posicionamento, argumentando que não se admitia uma religião sem
a prece. Ela é requisitada por espíritos sofredores, predispõe as pessoas ao recolhimento, representa o testemunho de fé perante Deus
e, mais, não representa somente pedidos, mas louvor e agradecimento ao Criador. Além disso, a oração tem o condão de direcionar os
pensamentos dos que se aglutinam em torno de um ideal, em forma de louvor a Deus, sem a revolta do orgulho humano.
Debalde. Todos os argumentos apresentados pelos familiares foram repelidos por Bernardo e Luciana.
Paciência! Respeitariam os novos pensamentos do casal, mas não deixariam de desenvolver as demais atividades que os tempos haviam tornado tradicionais naquela família de trabalhadores.
Uma delas era a compra de lembranças. Numa das noites de dezembro iam todos, pai, mãe, filhos, noras, genros e netos, comprar os presentes que iriam ser trocados no tradicional amigo secreto familiar. Escolhiam um shopping center e se espalhavam,
separadamente, para as compras natalinas. O grupo de lojas fervilhava com o intenso movimento. Marcavam um ponto de reencontro e de lá iam para a casa de Francisco e Maria.
Tudo parecia correr bem, quando surgiu um problema. Aliás, um problemão. Quando todos estavam reunidos de volta das compras, sumiram os filhos de Bernardo e Luciana. A princípio, nada demais, pois com tanta gente pelos corredores e grande atividade do comércio, era comum um ou outro distanciar-se do grupo. Bastava uma ou outra ligação pelo telefone celular e todos estavam juntos novamente.
Mas, a coisa começou a ficar séria. Depois de uma hora de intensas buscas, Jorge e Ritinha, de oito e dez anos, não apareciam e nem atendiam ligações em seus celulares. Infelizmente, nessas horas pensa-se o pior. Preocupados, imaginaram não ser impossível que algum maluco, seduzido pela ambição, tivesse abordado as crianças com propósitos inconfessáveis. E o tempo corria célere, alimentando a ideia de sequestro. Família próspera, filhos realizados, Barbosa muito conhecido: ingredientes para um evento funesto.
O desespero bateu em todos, exceto em Francisco e Maria.
Equilibrado, o chefe do clã chamou todos e conclamou:
— Bernardo. Já falei com o serviço de segurança do shopping.
Eu e sua mãe, juntamente com os demais do grupo, vamos nos manter em oração, enquanto você fará um pente fino com os experientes
vigilantes que o acompanharão.
Bernardo e Luciana, desesperados, não ousaram discutir e imediatamente seguiram as instruções de Francisco. Enquanto a família inteira, incluindo as crianças, em local discreto passaram a pedir a ajuda do Alto, os pais de Jorge e Ritinha iriam percorrer palmo a palmo, todas as instalações do shopping.
Foram os quinze minutos mais longos da vida de Bernardo e Luciana. Já haviam passado praticamente por todos os cantos e nada  das crianças. Profissionalmente, os vigilantes seguiram rigorosamente os protocolos em busca das crianças perdidas.
Quando partiram para grande magazine, Bernardo, chorando, disse:
— Nem adianta entrar nessa loja, eu e Luciana já a reviramos totalmente. Aí eles não estão.
Mesmo assim, os vigilantes foram entrando e procurando, nos lugares mais improváveis e possíveis. Foi quando Lucinda, a vigilante mais experiente, perguntou para Luciana:
— Eles gostam de jogos eletrônicos?
Diante da afirmativa, Lucinda enveredou por uma ala nova, recentemente inaugurada pelo grande magazine e, de longe, Bernardo e Luciana viram os filhos. Tranquilamente, Lucinda recomendou que se acalmassem e se recompusessem, para que os filhos não se assustassem com o pânico dos pais.
Enquanto Bernardo voltava, imediatamente, para acalmar os demais familiares, Luciana, menos desesperada, conseguiu falar com os filhos em tom equilibrado, mas envolto em lágrimas:
— Crianças, todos estão esperando por vocês. Vamos!
— Por que está chorando, mamãe? — perguntou inocentemente Ritinha.
Abraçando-os, Luciana se limitou a dizer:
— Estava com saudades de vocês.
***
Agradecidos, Bernardo e Luciana entenderam o sumiço das crianças como um alerta do Alto, relacionado com as novas ideias que haviam apresentado, visando a abolição da oração de suas vidas.
E foi por iniciativa deles que, ainda naquela noite, reuniram-se todos na casa de Francisco e Maria, para agradecer a Deus, em oração, pela
graça da proteção recebida.
E na noite de Natal, como sempre fizeram durante toda a vida, um pouco antes da ceia, de mãos dadas, lá estavam Bernardo e Luciana, participando da tradicional prece de Natal do lar dos Barbosa.
***
Fiquemos com Emmanuel:
Quem estime a prática da caridade, compadeça-se das almas endurecidas, beneficiando-as com as vibrações da prece.
Quem já esteja entesourando a humildade, não se afaste do orgulhoso, conferindo-lhe, com o exemplo, os elementos indispensáveis ao reajuste.
Quem seja detentor da bondade, não recuse assistência aos maus, de vez que a maldade resulta invariavelmente da revolta ou da ignorância.
Quem estiver em companhia da paz, ajude aos desesperados.
Quem guarde alegria, divida a graça do contentamento com os tristes.
Asseverou o Senhor que os sãos não precisam de médico, mas, sim, os enfermos.
Nota do autor: baseado em fato real.

Fontes consultadas: Revista Espírita, de Allan Kardec, janeiro de 1866, Allan Kardec em Revista, de Maroísa Baio e Fonte Viva, de
Emmanuel.